Artes Visuais / Artes Escritas

“Nos trabalhos de Evando Nascimento, esses muros que dividiam áreas de criação e pensamento foram dinamitados. O encontro ou a não demarcação desses gêneros é, portanto, uma atividade que permite ao autor um livre e pleno desenvolvimento da imaginação”, Jardel Dias Filho, professor no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Londrina, crítico de arte e diretor da editora Galileu.

Desde 2015, quando fez seu primeiro curso de desenho com a artista Suzana Queiroga, na Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage (Rio), Evando Nascimento tem realizado trabalhos que associam a escrita verbal à linguagem das artes plásticas. Depois fez também cursos com os artistas Chico Cunha (EAV), Fred Carvalho (professor da Escola de Belas Artes, EBA, da UFRJ) e Cadu (professor do Departamento de Artes da PUC-Rio). Foi assim que surgiram, primeiro, os desenhos-escritos, em seguida as pinturas-escritascolagens-escritas e, mais recentemente, os objetos-escritos.

Em todos esses casos, a palavra escrita é transvalorada em sua dimensão pansemiológica: são rastros, traços & marcas, que se dão no texto do mundo como inscrições. Razão pela qual essas obras (ou desdobras, como por vezes as nomeia) são também denominadas como excritas, compondo uma textualidade que vai muito além da palavra. Letras ou caracteres + desenho, pintura, colagem ou objeto configuram grafismos, que intentam abrir novas possibilidades de pensamento i-material.

Aqui foram selecionados exemplares dessas modalidades, as quais não são compartimentos estanques, pois ocorrem intercessões entre elas – por exemplo, uma colagem-escrita pode ser também uma pintura-escrita, como é o caso de “Más / Caras (I): A ‘Focinheira’”. Diversos outros trabalhos lítero-visuais poderão ser acrescentados na Linha do Tempo deste site, reforçando sempre o diálogo entre Literatura, Filosofia & Artes, que mobiliza estética e politicamente tudo o que se faz. As referências são múltiplas, mas alguns nomes se destacam ao longo do processo:

Van Gogh, Oswald de Andrade, Lygia Clark, Antonin Artaud, León Ferrari, Henri Michaux, Clarice Lispector, Lima Barreto, Mira Schendel, Yves Klein, Rubem Valentim, Augusto de Campos, Marcel Duchamp, Lena Bergstein, Cy Tombly, Jacques Derrida, Carolina de Jesus, Haroldo de Campos, Abdias Nascimento, Paul Klee, Rosana Paulino, Friedrich Nietzsche, Hélio Oiticica, Ana Cristina Cesar, Hans Hartung, Caetano Veloso, Anselm Kiefer, Emanuel Araújo, Peter Greenaway e o assombroso Arthur Bispo do Rosário.

A maior parte das obras aqui reproduzidas foram primeiro divulgadas nas redes sociais, sempre acompanhadas por um texto. Esses pequenos ensaios não visam simplesmente a explicar as imagens, pois nasceram junto com elas, e são por si sós uma forma de poesia, ou melhor, de proesia. De modo que há sempre dois poemas em diálogo: um verbal e outro mais visual, sem que haja oposição entre as duas esferas, mas sim entrelaçamento. A própria verbalidade é sempre uma combinação de registro oral & visual. E todo verdadeiro (an)artista é um poeta, no sentido do poietés grego: um fazedor, como bem definiu Borges.

A rubrica Linha a Linha: Desenhos-Escritos corresponde à exposição que ocorreu de outubro a dezembro de 2022, na Casa de Leitura Dirce Côrtes Riedel, da UERJ, sob curadoria de Marisa Flórido (Instituto de Artes da UERJ). Está prevista para 2024 a exposição Arquigrafismos: Minibiblioteca de Escritas (Semi)Assêmicas, no Paço Imperial do Rio de Janeiro, com a mesma curadoria da anterior. (Para uma explicação da noção de arquigrafismo, ver seção correspondente abaixo.)

LINHA A LINHA

Exposição Linha a Linha - Apresentação Geral

Exposição Linha a Linha - Obras

DESENHOS-ESCRITOS

A Desordem das Inscrições (Contracantos)

 

Folha (morta)

Trabalhando com a imagem de uma folha viva, fotografada e transferida para o computador, me convenço na prática daquilo que já sabia na teoria: o desenho é um FÓSSIL do modelo original. Desenhar com linhas dá a ilusão de uma realidade objetiva, que mimetizaria o real. Ao me livrar das linhas e me dedicar a manchas e sombras, atingi outra dimensão do real imaginário.

Um fóssil é o que sobrevive à rudeza do tempo e do espaço, constituindo a terceira dimensão da matéria. Quando tudo desaparece, sobre a marca d’água de um corpo que nasceu, sofreu, gozou & morreu – o fóssil é somente uma impressão do corpo desaparecido e perpetuado como frágil silhueta. O desenho, mesmo no papel, é sempre pluridimensional, pois materializa o inexistente e dá perenidade ao que em algum momento existiu: a folha da árvore persiste na folha de papel, ambas sustentadas pela mesma inefável substância-que-não-há. Irredutível a qualquer outra artesania – desenhar se imprime na gestualidade do espacitempo.

A folha desenhada em certo sentido está mais viva do que a outra, destinada a desaparecer, daí a necessidade da fotografia, a escrita da luz. A fossilização das coisas e dos viventes lhes dá mais vida, em vez de apenas petrificar. A verdadeira existência principia no desenho, disso sabiam os homens & mulheres das cavernas, cujos rabiscos e pinturas ainda hoje são contemplados nas pedras, milênios após os humanos terem partido. O fóssil é físsil, já dizia Drummond décadas atrás, mas resiste à fricção, inventando novas ficções.

Quando “eu” acabar, sobrarão minhas rudes garatujas. Pó, poeira, névoa – imagem ideal: nada.

(Os peixinhos vermelhos de Matisse nunca existiram senão na tela pintada. Mesmo que ele tenha se baseado num aquário real, importa a matéria viva do quadro. Desenho & pintura se irmanam na arte de reinventar o mais-que-humano, preservando-o de sua natureza perecível.)

(25.IX.18)

 

Folha (viva)

 

Desenhando uma FOLHA por mim colhida e fotografada, percebo que o chamado desenho realista não é em hipótese alguma uma imitação do real, mas sua reinvenção. Importa tirar o máximo proveito da plasticidade das coisas e dos viventes, das coisas vivas, e não imitá-las com servilidade. O resultado é meu desenho e não o do suposto modelo. Ao final, este é que terá servido à (des)arte, e não o contrário.

Ou melhor: ninguém serve a ninguém, o regime é de plena liberdade, os dois planos tiram proveito para continuar existindo. A planta revive organicamente em minha fotografia e em meu desenho (imagem de imagem). O desenho, se for bom, se sustentará como (anti)arte a partir do vegetal que lhe deu vida. A plasticidade é o que permite a sobrevivência das coisas vivas, e no melhor dos casos sua supervivência.

(27.IX.18)

“Elas” & Nós

Esse desenho-escrito é um dos que incluirei no Livro das Plantas (e não apenas “sobre” as plantas), reunindo ensaios, artigos e pequenos fragmentos de ficção-poesia, filosofia & artes (os três saberes que me seduzem desde a adolescência e que coloco um pouco, misturadamente, em tudo o que faço). Gosto da linguagem conceitual, como gosto da linguagem poética e/ou ficcional e também, muitíssimo, da linguagem visual. Porém gosto sobretudo, e cada vez mais, da própria linguagem das plantas, com sua retórica vegetal.

São desenhos-escritos indecisos entre desenho e escrita verbal, ambos modos de inscrição, como aparece já no título de meu último livro de ficções A Desordem das inscrições (Contracantos). No caso dessa Folha, o texto escrito a mão, com minha letra cursiva ilegível, falsifica um tratado de botânica, fazendo uma comparação entre a folha da árvore e a folha de papel – irmãs que se desconhecem. Cabe, num duplo gesto, reverenciar e desacreditar a linguagem verbal, bem como a linguagem tradicional do desenho, da pintura, da gravura.

E a linguagem das plantas são os rastros e vestígios que elas deixam em toda parte: folhas, galhos, gravetos, cipós, raízes expostas ou ocultas, ramos, caules, ramas, cascas, frutos, perfumes (quantos odores distintos, toda uma perfumaria natural!) espinhos, caroços, sementes, pigmentos clorofílicos, como pequenos ideogramas ou hieróglifos para nossa decifração. O alfabeto, mesmo com suas infinitas combinações, é sempre insuficiente para dar conta dessa colossal biodiversidade.

Aliás, a expressão “linguagem das plantas” é totalmente inadequada àquilo a que se refere. “Elas” não se deixam apreender por nenhuma palavra, nenhuma metáfora, nenhum conceito, do mesmo modo como transbordam de vasos, cercados, canteiros, pomares, quintais, jardins, reservas ou qualquer prisão que tentem lhes impor. Estão sempre em rota de fuga e expansão: DISSEMINAÇÕES, em vez da desgastada “desconstrução”. (Cabe desconfiar sempre das denominações, todas falsificadoras: “Words, words, words”, já dizia o atormentado príncipe-filósofo Hamlet. Sem poesia-ficção, a linguagem verbal é folha morta, que pode, todavia, virar húmus e renascer como ficção poética.)

As folhas e os troncos das árvores muitas vezes lembram vales, montanhas & rios sinuosos. Pequenos mapas de uma região desconhecida, the undiscovered country. Toda uma paisagem se esconde na própria folhagem. Peguei essa folha ao acaso (um lance de dados) numa árvore ornamental de rua no Rio de Janeiro. Realizado com grafite, em papel Canson Lavis Technique, o desenho-escrito tem o mesmo tamanho da folha natural: exatos 35 cm, de uma ponta a outra.

Sou fascinado pelo desenho a grafite ou carvão por ser uma das formas mais primitivas do que hoje chamamos de arte. Com um lápis e uma folha de papel, pode-se desenhar praticamente qualquer coisa. Uma pausa refrescante no mundo hipertecnológico de aparelhos smart. É preciso buscar outras sensações com a poesia e as narrativas. Ao homem das cavernas, bastavam paredes e rochas para fazer suas desordenadas inscrições, que nem o vento, nem o sol, nem as tempestades conseguem apagar.

Gosto do desenho realista, não porque alimente qualquer fantasia de representação, longe disso, mas justamente para desfigurar o figural, rompendo com a tradição renascentista “retiniana” ou “oculocêntrica”, tantas vezes denunciada por Marcel Duchamp. Meu desejo é sempre desfigurar as figuras, desrepresentar as representações, desapresentar a Presença, quando pareço fazer o contrário… Imitar o discurso científico, traindo-o, faz parte do jogo. Como um pseudobotânico e (paciente) artesão.

Trata-se então do que chamo de FITOGRAFIA e de FITOGRAVURA, conforme se incline mais para a escrita ou para o desenho das plantas, formas de intervenção do que também chamo de FITOTERAPIA, num mundo enfermo. Meu phármakon. A maior parte de nossos remédios, caseiros ou industriais, vem de plantas (muitos venenos também). A elas devemos, direta ou indiretamente, todo o alimento que consumimos, como também os medicamentos, a estabilidade climática e as feições estéticas do próprio planeta – é muita qualidade para um só reino!

FITOGRAFIA + FITOGRAVURA = FITOTERAPIA

(21.IX.19)

A Desordem das Inscrições (Contracantos)

QUASE-IDEOGRAMAS ou LOGOGRAMAS VAZIOS

A série de ARQUIGRAFISMOS, que iniciei espontaneamente em maio deste ano é uma tentativa de escrever sem produzir significado. O desenho-escrito, sobretudo o não figurativo, é essencialmente assêmico: são inscrições mais ou menos arbitrárias, mais ou menos motivadas, que vou fazendo ao correr da pena, da caneta, do pincel ou do lápis – qualquer instrumento ao alcance da mão é bom para proliferar traços sem significado definido, mas não exatamente nonsense, o qual é ainda uma caricatura do sentido…(Esses Arquigrafismos recentes foram precedidos pelos grafismos do livro de artista Linha a linha (desenhos-escritos), composto entre 2015 e 2016, a ser em breve transformado em livro impresso.)

Roland Barthes se esforçou a vida inteira para driblar a guerra dos sentidos, que permeia nossas culturas ditas ocidentais (plural obrigatório: são muitas). Daí o fascínio (um tanto idealizado) pelo Japão. Seu horror aos estereótipos vinha dessa alergia congênita ao excesso de sentidos & imagens que nos assedia, por assim dizer, dia após dia. Se estivesse vivo, ficaria repugnado com a proliferação de significados belicosos na graphosphera digital em que estamos presos: cada fato real ou virtual gera uma infinidade de interpretações, muitas delas armando uma guerra aberta de posições antagônicas. O extremismo e o negacionismo das direitas agravaram o que já era um comportamento humano muito desumano: descreditar a opinião alheia para, finalmente, aniquilar o outro ou a outra, por meio de ações & discursos mentirosos. (Barthes também fabricou suas próprias imagens assêmicas, inspiradas ou não em Cy Tombly – sempre em busca do neutro perdido.)

Um desses dias, munido de canetas-pincel, senti vontade de fazer algo próximo dos ideogramas chineses, que, como se sabe, estão entre as mais complexas formas de escrita já inventadas. Hoje prefere-se chamar os caracteres chineses de sinogramas ou de logogramas, dividindo-os em seis categorias, mas aqui só refiro duas que me interessam mais: pictogramas (escrita figurativa, mimetizando a forma de viventes & coisas) e ideogramas propriamente ditos (em que se representa uma ideia ou um conceito, sem mimetizar a forma do referente).

Meus quase-ideogramas ou logogramas vazios oscilam, pois, entre a total arbitrariedade (parto sempre de um traço casual, ao deslizar da mão sobre o papel ou sobre a tela) e alguma motivação (uma vez inscrito, o traço rapidamente se torna motivado, pedindo repetição & coerência – virando um código pessoal, intransferível: noutras palavras, minha assinatura).

Sempre fui fascinado pela tese da arbitrariedade do signo proposta por Ferdinand de Saussure, discordando, no entanto, do linguista suíço por achar que a motivação nasce junto com o traço arbitrário, e se tornam um par inseparável, este engendrando aquela – e vice-versa: é o vice (a outra vez) que versa e reverte o mesmo no outro e o outro no mesmo, ao infinito – vice-versa-vice-versa-vice-versa-vice… Tal é a vez e a hora do verso-reverso-inverso-anverso-proverso-transverso. Pós-verso? (Discussão tão antiga quanto o colosso de Rodes…) Pois verso o reverso pelo avesso…

Desse modo, viceversando tracei esses sinais totalmente ao sabor do livre-arbítrio & da mais determinada motivação no arco-íris. Riscar linhas & formas durante horas equivale a meditar: aos poucos, a mente vai se esvaziando de sentidos, no embalo da música ambiente bem suave (Arvo Pärt ou o Uakti, por exemplo), e quando percebo estou do outro lado do espelho: nada mais faz sentido, até as imagens são mudas, só sobram rastros e formas informes – ou seja, arquigrafismos quase-ideogrâmicos. Tais & quais.

Todos os vestígios arquigráficos partem do CORPO (e não só do olho, do cérebro e da mão) e para ele retornam em passos casuais de bem marcada dança & contradança. Bem no compasso de meu passo, diz a canção, que repasso.

O que eu mais gosto no desenho não é tanto a imagem final – mas que também me agrada, quando se aproxima do que concretamente imaginei –, porém sim a suave fricção dos dedos na superfície do papel, ao tempo em que seguram o lápis, a caneta ou o pincel, traçando ficções reais & imaginárias.

P.S.: toda vez que pego um instrumento para desenhar, pintar ou colar, tenho um frio na barriga, como deve sentir o paraquedista aprendiz na primeira experiência de se lançar em voo solo – rumo ao solo… Todavia, ah, toda via!, tenho um prazer imenso quando esqueço a aflição de cada recomeço e me deixo embalar no passo do traço sobre a superfície lisa ou rugosa. Pé ante pé. Uma vez em pleno salto no escuro, o medo de errar desaparece, dando vez e lugar a deliciosas palpitações, como no prazer da cama. Só me resta também ouvir o grão da voz em minha escrita silente. Muda! Excrita, portanto, entre canto & escrito, entre dito, redito & inscrito no ar no mar na terra sobre a folhagem da relva mato capim.

P.S. 2: não existe suporte ou material inócuo. Cada instrumento que escolho traz desafios, soluções & resultados distintos, mesmo que a motivação de base seja a mesma (por exemplo, realizar Arquigrafismos). Pois quem decide qual vai ser o jogo final dos sinais e a forma-matéria da obra é mesmo o Acaso, pleno de determinações – um servo fiel do Destino. É o que sempre chamo de clandestinação plástica: o destino de cada um/a plasmado pelas mãos da calculada Sorte.

P.S. 3: como pretendo desenvolver noutro momento, essas inscrições na verdade são semiassêmicas:  não têm significado, mas despertam muitos sentidos…

P.S. 4: faço bem mais desenhos-escritos, pinturas-escritas & colagens-escritas do que posto no Facebook. Evito assim banalizar a postagem de trabalhos visuais, como tanto se faz hoje em dia – razão pela qual tenho Instagram mas não uso. Para mim, não faz sentido – ou talvez faça sentido demais e por isso evito… (da capo).

(Caneta-pincel & Posca sobre papel Canson Lavis Technique, 34 x 50cm.)

Abraços caligráficos,

Evando Nascimento Camacã

(Sou um Camacã tangendo um teclado.)

(29.VIII.21)

PINTURAS-ESCRITAS

PINTURA EM CONVULSÃO (II)


PINTURA CONVULSIVA – COVID-19 (II)

Fiz essa pintura-escrita no final de abril. Sinalizava então um possível desanuviamento, mas hoje se vê o oposto, somente nuvens escuras no horizonte sufocado. Me lembro de uma imagem semelhante que postei aqui e agradou ao saudoso ficcionista Sérgio Sant’Anna, o qual deixou um comentário conciso e enfático, bem em seu estilo. Como fazem falta seus posts antifascistas! Não havia uma vez que eu entrasse nesta rede dita social que não houvesse alguma frase certeira dele.

Ontem passei o dia novamente colorindo – foi um dia colorido? De modo algum, entrei apenas à noite no Facebook e me deparei com as piores notícias, inclusive a do falecimento de OLGA SAVARY, ilustríssima poeta, ultimamente esquecida. O luto e a melancolia em que estamos submersos parecem não ter fim. A pandemia viral e a pandemia política estão ceifando nossos melhores artistas, além de indígenas, mestiços, negros, pobres, mas também pessoas de classe média. Somente os políticos canalhas e a alta burguesia têm sido poupados – não deve ser por acaso. Tolo de quem acredita em justiça divina, quando a dos homens falha…

Durante algum tempo, apenas desenhava com grafite, fazendo o que chamo de desenhos-escritos (inspirados em Artaud & muitos outros), mas depois senti a necessidade orgânica da cor. Aí veio a pintura-escrita, sobre tela ou papel, dois suportes que me agradam muitíssimo, porém outros virão. Essa necessidade de colorir deve ser porque o mundo está cada vez mais cinza – mas a analogia é injusta, pois amo essa cor, tal como se pode ver na imagem reproduzida.

O que mais me agrada nessa pintura convulsiva são as VOLUTAS involuntárias que a mão traçou. Quando estou pintando, deixo o corpo inteiro agir sozinho, com seus instintos, pulsos, pulsões e impulsos, suas IMPULSÕES (Triebe). O cálculo racional é o que menos interfere. Ocorre uma hipersensorialidade, em que nenhum dos sentidos se sobrepõe ao outro – o olhar deixa de ser soberano para se tornar um simples gatilho dos gestos que se multiplicam. Da visão ao tato, do odor ao paladar, da audição à compreensão intelectual, os sentidos todos se fundem para levar adiante a cena de invenção, em que eu viro outros, me outro (como diz lindamente Pessoa).

Recentemente, o crítico e amigo chileno raúl rodríguez freire (ele assina desse modo, à la cummings), coeditor da Mimesis Ediciones, me chamou de ANARTISTA, título que amei, pelas muitas ressonâncias poéticas que traz. Trata-se de homenagem ao anartista de Duchamp, e ao antiartista de Dadá & Cia. Quando alguém me acusar de não ser artista, responderei com satisfação “Sim, me chamaram de anartista!”

Cada vez mais, estas postagens se tornam meu DIÁRIO DO CONFINAMENTO, uma nova versão do experimentalíssimo retrato desnatural (diários 2004 – 2007), meu primeiro livro de ficção (ed. Record, 2008). O texto inaugural foi o artigo “Um ponto de virada”, publicado na revista Piauí de abril. Porém há muitos minitextos inéditos, inclusive no espaço digital do Facebook (nem tudo o que se escreve é imediatamente publicável… há que se dar o tempo da depuração).

Abraços calorosos porém distanciados,

Evando (Camacã) Nascimento

(Acrílica sobre papel Hahnemühle, 40 x 50 cm.)

(17.V.20, às 6:30)

MÁS / CARAS (I): A “FOCINHEIRA”

Fiz alguns trabalhos nos últimos meses, utilizando papel & máscaras como suporte: as MÁS / CARAS, ou seja, as nossas caras com a “focinheira” pandêmica de todo dia. Embora use sistematicamente o incômodo acessório, nunca me acostumarei com a visão de uma humanidade de rosto semicoberto, como feras que não podem andar livremente sem se devorarem. Deve ser a vingança dos tão maltratados animais…

Essas colagens-pinturas são exercícios de respiração, à la Duchamp: meu modo de viver, sobreviver e quem sabe superviver num mundo em pandemia & anemia, com tantas mortes programadas. Enquanto isso, aguardamos a imaginária vacina de um desgoverno delirante. O verdadeiro pandemônio.

Nesse trabalho, colei um fragmento de notícia sobre a pesquisa de vacina contra a covid-19 e uma máscara utilizada. São, portanto reúsos, de materiais descartáveis.

Respiremos para não (ex)pirarmos de vez.

Abraços solidários,

Evando Nascimento

Colagem de máscara em tecido e pedaço de jornal, com pintura acrílica sobre papel Hahnemühle, 40 x 50 cm.

(13.XII.20)

As colagens-escritas com jornal foram feitas com dupla matéria: os artigos que li e recortei para colar e o suporte de papel para pintar com acrílica. Difícil imaginar material igualmente rico. Sem falar que todo jornal é antes de mais nada um diário – só que um diário coletivo, enquanto o meu é individual porém povoado por inúmeras vozes corais, basta escutar para ouvir a algaravia reinante. Jamais estou sozinho nessa viagem escritural, este é todo meu alento: é sempre o outro, a outra que me escreve, mesmo quando pareço lhe escrever.

(25/26.XI.20, anotação do diário Vital)

Aqui o texto nasce junto com a imagem a que se vincula – são escritas visuais-literais. EXCRITAS, como dito. Sempre acontece de um (o texto) se iniciar antes da outra (a imagem), ou o contrário, mas o processo inventivo logo se torna duplo, passando da figura à letra e da letra à figura, transitivamente. Uma pode viver sem a outra, mas a outra sempre dá vida a uma, e vice-versa. Espécie de simbiose: duas formas de vida que se engendram e se alimentam mutuamente – dois biontes, portanto. Desenhos-escritos, pinturas-escritas, colagens-escritas, performances-escritas são, antes de tudo, CORPOS ESCRITOS / CORPUS ESCRITO no mais estrito senso, que se amplifica ao infinito –

A mais bela corpografia é sem dúvida aquela que se perfaz a dois (ou a três, até mais, depende da volúpia de cada um/a) na cama, sentado ou em pé (idem). Aí a realidade tão dura do mundo se torna pura CORPOESIA.

(05.IX.21)

COLAGENS-ESCRITAS

A Desordem das Inscrições (Contracantos)

 

Para Yohannis, em memória dos momentos fugidios…

καλιμέρα! Uma pequena pausa nos horrores atuais. Durante este “grande enclausuramento”, além de pinturas & desenhos-escritos, tenho feito também colagens, duas delas a partir de fotografias, que chamei de (QUASE) POSTAIS.

Quando morei na França nos anos 1990 (dois anos em Paris, como bolsista do CNPq, para estudar filosofia na Sorbonne e na École des Hautes Études en Sciences Sociales (E.H.E.S.S.), e mais três dando aulas de literatura e cultura brasileiras na Université Stendhal de Grenoble), aproveitei para viajar a diversos países da Europa. Uma das viagens mais fascinantes foi à Grécia. Tenho amigos que vão todos os anos a Paris e nunca visitaram esse estupendo país mediterrâneo, que muito deu ao mundo, tendo recebido também o influxo cultural da Ásia e do norte da África (“o berço da cultura ocidental” teve outros berços).

Me senti então de volta às aulas de História no Instituto Social da Bahia (ISBA), onde cursei o ensino médio em Salvador, pois visitei Atenas e fiz também o tour do Peloponeso, que me lembrou a famosa guerra na Antiguidade. Conhecer a Acrópole e o Museu de Atenas, depois passar por Corinto, visitar o magnífico teatro de Epidauro, o templo de Apolo em Delfos e as ruínas de Olímpia e de Micenas, entre outras maravilhas, é inesquecível (estou seguindo a ordem geológica da memória afetiva, não a real). As aulas de grego, durante um semestre, no Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia (UFBA), foram úteis para ler os caracteres escritos e, portanto, compreender algumas palavras e expressões.

Como fiz inúmeras fotografias nessas viagens, todas reveladas pelo laboratório da FNAC, pude me dar o luxo de rasgar e colar um tanto arbitrariamente algumas delas, sobretudo as repetidas. No centro da heteróclita colagem em anexo, se encontra uma imagem minha em plena juventude. O trabalho não é um autorretrato mas sim o que chamo de ALTER-RETRATO, pois a foto foi tirada “pelas lentes do amor”, como na linda canção de Gilberto Gil, no caso, lentes de meu amor grego, que os deuses mataria de inveja.

Trazemos no corpo as ruínas do que fomos noutra época, sempre mais gloriosa do que a atual. A única coisa que eu sei de Cronos é que ele nos canibaliza e não há volta, a despeito das máquinas do Tempo que as ficções científicas imaginam. (Fiz selfies apenas em 2006, como experimento, quando adquiri uma câmera digital, e antes que virassem moda – voltei a tirar algumas recentemente, escondido atrás da máscara, como um biombo facial…)

Somos um mosaico dos vários momentos vividos. O passado não retorna mas permanece como eterno vestígio do que fomos, até virarmos pó, névoa, nada. Vaidade das vaidades é o que somos – e o Qohélet é um dos grandes livros em todas as eras. Agora que me aproximo dos 60 anos, tudo começa a fazer outro sentido, que ainda não sei bem decifrar. Cedo ou tarde serei devorado pela Esfinge temporal… antes tarde!

Será por acaso que os meios de transporte público na Grécia se chamam metaphorá? E o que dizer dessa outra linda palavra que os povos helênicos nos legaram, democracia, hoje tão ameaçada em tantos países?

P.S.: no penúltimo parágrafo, há a paráfrase implícita de uma famosa frase de Julia Kristeva: “todo texto se constrói como mosaico de citações, constituindo na absorção e na transformação de outro texto” [T]out texte se construit comme mosaïque de citations, tout texte est absorption et transformation d’un autre texte]. Reformularia assim: “todo corpo é um mosaico de citações existenciais”. E, como diz a canção de Monsueto & Arnaldo Passos, “Se seu corpo ficasse marcado,/ por lábios ou mãos carinhosas…” Tá na cara.

P.S. 2: Barthes relaciona o punctum da fotografia ao acaso, como um acontecimento que punge. Difícil é descobrir por que essa ou aquela foto punge, mas a maioria não.

P.S. 3: se desejasse um epitáfio – coisa que jamais terei, pois quero ser cremado, virando cinza de cinzas –, esse seria Non, je ne regrette rien, da canção de Piaf, que traduziria duplamente como “Não me arrependo de nada” e “Nada me faz falta”. Apesar e graças a tudo, nada tenho a lamentar, e nietzschianamente reafirmaria cada um dos momentos vividos, pelo bem, pelo mal. (Isso do ponto de vista pessoal – do ponto de vista coletivo, a História é bem outra: muito a lamentar. Hoje mais do que nunca.)

Colagem com fotografias & acrílica sobre papel Hahnemühle, 40 x 50 cm.

 

(30.V.20, às 06:55)

ARQUIGRAFISMOS: ESCRITAS (SEMI)ASSÊMICAS

A Desordem das Inscrições (Contracantos)

 

Esse trabalho faz parte de uma série de ARQUIGRAFISMOS, que configuram uma ESCRITA NÃO VERBAL, a maior parte realizada com canetas coloridas (caneta nanquim, Posca, caneta permanente, Micron).

Quando realizou a curadoria da exposição LINHA A LINHA: DESENHOS-ESCRITOS, na Casa Dirce em 2022, Marisa Flórido Cesar, crítica e professora do Instituto de Artes da UERJ, me sugeriu que fizesse uma “Biblioteca” com os Arquigrafismos (já que são ESCRITAS ou, como chamo, EXCRITAS, que remetem também à tradição livresca). Como sou obediente, fiz mais de trinta.

Alguns deles foram ganhando proporções inesperadas, este, por exemplo, mede 70 x 100 cm. Trabalho debruçado sobre uma mesa bem ampla, com traços gestuais que vão se inscrevendo em princípio aleatoriamente na folha de papel Canson. Depois de algum tempo, começo a dar forma ao CAOS, palavra que, não por acaso, está contida em ACASO. Como desenho (e pinto) ouvindo música, a tarefa muitas vezes vira uma dança improvisada…

Motivo pelo qual resolvi nomear quatro dos Arquigrafismos como A DANÇA. A inspiração veio também de MATISSE, que tem um famoso quadro com o tema. Nomeei este trabalho aí como “A DANÇA II – CAPOEIRA”, outros são dedicados ao próprio Matisse, ao estupendo Grupo Corpo e ao dançarino e coreógrafo húngaro Rudolf Laban.

Uma aluna da Pós-graduação em Artes Visuais da Escola de Comunicação da UFRJ, onde estive recentemente fazendo palestra sobre minha trajetória como escritor, ensaísta, professor universitário & artista visual, disse que conseguia perceber “MÚSICA” nesses trabalhos. Disse ainda que, apesar de esses caracteres terem algo de remoto no passado, na verdade remetiam ao futuro. E isso me lembrou do belíssimo livro O FUTURO ANCESTRAL, do grande AILTON KRENAK (ed. Companhia das Letras). Não por acaso: muitas dessas INSCRIÇÕES ARQUIGRÁFICAS são inspiradas em grafismos indígenas, africanos & outros. Inspiração como ponto de partida para o voo livre…

Falei na ECO a convite do professor e artista Fernando Gerheim, por sugestão do incansável Tchello d’Barros, curador de incontáveis mostras & exposições. (Inclusive a belíssima ASSEMIAS, que teve lugar até semana passada na própria Eco, da qual participei com um trabalho “SemiAssêmico”: sem significado verbal, mas pleno de sentidos corporais.)

Já me perguntaram por que chamo essa série de ARQUIGRAFISMOS: exatamente porque remetem a uma (in)certa ANCESTRALIDADE (a ARKHÉ grega, mas também indígena, afro, egípcia etc.). (In)certa porque ela é ainda muito presente e se lança para um porvir em aberto –

Ao mesmo tempo, dialogo com a “ARCHIÉCRITURE” ou a “ARQUIESCRITA” de Derrida, que marcou época e continua a se disseminar na cultura ocidental e mais além. Os Arquigrafismos foram meu modo visual de traduzir a “ÉCRITURE” de Barthes, Derrida, Blanchot & outr’s. Jamais repito literalmente o pensamento alheio, sempre procuro traduzi-lo em meus próprios termos, inclusive plasticamente. Me considero, pois, um TRANSDUTOR.

Meu querido amigo, grande ensaísta, tradutor & professor chileno raúl rodríguez freire (Mimesis Ediciones) me chamou faz algum tempo de QUIRÓGRAFO DO RIO – Quirógrafo Baiano do Rio, complemento. Quirógrafo é parente de quiromante, ao menos na etimologia, mas a significação é bem outra… Sim, desenho-escrevendo com a mão, mas também de corpo inteiro – daí me transmutar às vezes em CORPÓGRAFO BAILARINO.

Algumas pessoas viram um OVO na imagem, puro Acaso (sempre ele). Talvez o OVO CÓSMICO, aquele do Big-Bang e de tantas outras mitologias. O fato é que o desenho pode sempre mudar de forma. Trabalho com um conceito prospectivo de (AN)ARTE: um trabalho nunca está pronto em definitivo, posso sempre retomá-lo e levá-lo para outros (des)caminhos. Chamo isso também de DESDOBRA. Quando exponho, é apenas uma etapa do processo que é mostrada. E, afinal, como já lembrei algumas vezes, para Duchamp quem conclui finalmente um quadro é o espectador – ou o participador de H.O.

Tenho então agora uma MINIBLIOTECA DE ARQUIGRAFISMOS, que exporei no Paço Imperial em 2024, com curadoria da própria Marisa Flórido.

P.S.: embora seja uma estrutura biplanar, há um fluxo espaço-temporal que a torna MULTIDIMENSIONAL.

P.S. 2: não há repetição de caracteres – cada um inventa seus próprios traços & retraços.  

25 de junho de 2023

Palavras da crítica: