Textos críticos
Revista Bunker N. 6

Revista Bunker N. 6: Dossiê Evando Nascimento. Org. Jardel Dias Cavalcanti.  Londrina: Galileu, 2022.
O desconcerto dos gêneros na obra de Evando Nascimento – Wallysson Soares

Dezembro de 2022

O desconcerto dos gêneros na obra de Evando Nascimento

Em minhas pesquisas e andanças pelos mundos costurados por Evando Nascimento, tenho defendido que uma das chaves para ler (e atravessar) a ficção do escritor e artista visual é o gênero. O primeiro livro de ficção, retrato desnatural (diários – 2004 a 2007), de 2008, reúne uma constelação de gêneros literários e discursivos sob o prisma do diário: “o gênero dos gêneros, onde cabem cópias, notícias, reportagens, entrevistas ao vivo, densos relatos – toda uma resenha do chamado dia-a-dia” (NASCIMENTO, 2008, p. 159). Se a tradição do diário envolve desvelar o “eu” que assina, para Evando se trata muito mais de desnaturalizar esse eu, dissolvido em múltiplas vozes que habitam o campo profícuo da escrita. As datas, que também assinam, são sementes que tornam o terreno do texto fértil para que a vida possa nas páginas brotar.

As datas permeiam toda a escrita ficcional do escritor e artista baiano, passando pela trilogia dos Cantos – Cantos do mundo (2011), Cantos profanos (2014) e A desordem das inscrições (Contracantos) (2019) – e, mais recentemente, pelo primeiro romance, Diários de Vincent: impressões do estrangeiro (2021). Se o retrato desnatural é uma colcha de retalhos de textos das mais variadas formas – entre versos e prosa, aforismos e ensaios, cartas e relatos –, a trilogia dos Cantos brinca por sua vez com a formato do conto sem abrir mão, contudo, da mistura desse tradicional gênero com outros, como a correspondência e o ensaio, ambos sob forma de ficção. Já o primeiro romance se mescla às cartas e anotações de Vincent Van Gogh, narrando seus dias de dedicação e delírio, de 1886 a 1890.

Podemos dizer, então, que o diário, “gênero dos gêneros”, é um phármakon que embaralha, perturba, converge e dissemina outros gêneros, abrindo a uma amplitude de formas e traços. A desordem das inscrições (Contracantos) merece uma menção à parte pois introduz, na obra de Evando Nascimento, a fusão da escrita com o desenho – ou desenhos-escritos, conforme descrito pelo autor. Entre as páginas dos contos/cantos, imprimem-se os desenhos que atuam junto às palavras, em traços que se tocam. Os desenhos, por esse motivo, também estão contaminados – pela escrita, pelo verso, pela assinatura. 

Na conferência La loi du genre [A lei do gênero], ¹ Jacques Derrida discorre sobre uma suposta lei dos gêneros: a de que eles não devem ser misturados. No entanto, uma força contrária irrompe dessa lei e cria uma lei gêmea: a de que os gêneros se convergem e se contaminam, irremediavelmente: “E se houver, imbricada no coração da própria lei, uma lei de impureza ou um princípio de contaminação? E suponha que as condições para a possibilidade da lei fosse a existência, a priori, de uma lei contrária, um axioma da impossibilidade […]?” (DERRIDA, 1979, p. 204, tradução livre).

O gênero é impuro. Por dentro da lei que o constitui age um “princípio de contaminação” que perverte o gênero e gera,  inventando categorias diversas a partir do cruzamento, da confluência. Ainda que trate inicialmente do gênero em sua instância
formal, Derrida compreende que o paradoxo vai além: “é uma questão que recobre o tema da lei em geral, de geração no sentido natural e simbólico […] de uma identidade e diferença entre o feminino e o masculino” (DERRIDA, 1979, p. 221, tradução minha).
A escrita de Evando Nascimento desdobra a questão do gênero em múltiplas camadas, traçando travessias entre os gêneros feminino e masculino, mas também no nível das espécies ao colocar o humano em contato com os bichos, as plantas e as coisas,
pintando um panorama de cores tão vivas quanto as obras de Van Gogh. Importa à textualidade atravessada de Evando as diferenças que se realçam na interação, no choque, forjando identidades multidiversas que irrompem contra ideias totalitárias de apagamento e de violência em relação às vidas precárias. Na literatura de Evando, essas vozes encontram morada, entoando num (des)concerto que nos embaralha, como as cartas desenhadas de rei e de rainha na composição do conto “As Metamorfoses”, o qual narra a intertroca entre homem e mulher se tornando, respectivamente, ela e ele – desorganizando as inscrições entre os gêneros, num convite à alteridade. Afinal, o leitor também se mistura à paisagem da escritura até sair das páginas desfigurado, buscando se remontar com as novas peças e cores apresentadas por Evando Nascimento.

As datas de Evando produzem a diferença a partir do deslocamento de espaço & tempo. Fazem isso ao reunir diversos cantos do mundo, paisagens variadas que ganham formas prismáticas a partir do “gênero dos gêneros”; e também ao desorganizar os dias, os meses e os anos, que desordenadamente misturam passado, presente e porvir, chamando às páginas filósofos, artistas e outros para habitar o mundo multivox.

O escritor Evando Nascimento Camacã, que mais recentemente tem optado por assinar seus textos nas redes sociais nomeando (e homenageando) a tribo indígena dizimada de sua cidade natal, na Bahia, colore um retrato em que os traços transbordam
a moldura, fundindo o mundo à arte (e vice-versa), criando uma mistura que não deixa de ser, também, muito brasileira em sua complexa heterogeneidade e de celebração das diferenças. Em tempos de destruição e falta de ar, sua obra é um respiro.

 

1 Ensaio de 1979, mas foi lido na tradução DERRIDA, Jacques. The Law of Genre. Appendix: Bulletin of the International Colloquium on Genre. Strasbourg, p. 202-232, 4-8 jul. 1979. Trad. Avital Ronnel. As retraduções desse texto são minhas.

 

Wallysson Francis Soares é doutorando em Teoria e História Literária na Unicamp. Pesquisa autoficção, animalidade e pensamento vegetal na obra de Evando Nascimento, na intersecção com a desconstrução de Jacques Derrida e com os pensamentos decoloniais