Textos críticos
O pensamento vegetal: A literatura e as plantas

POESIA

Evando Nascimento lança livro sobre plantas e letras

Integrante do conselho de curadores da Festa literária de Paraty (Flip), filósofo publica o livro de ensaios ‘O pensamento vegetal’

BM

Bertha Maakaroun

26/11/2021 04:00 – atualizado 26/11/2021 08:21

Inspirada na exuberância das florestas e na diversidade de suas criaturas, em sua capacidade regenerativa e no entrelaço entre vida e morte pelo vigor da memória ancestral, “Nhe’éry, plantas e literaturas” – no dizer guarani, “mata atlântica” ou “onde as almas se banham” – sustenta o conceito da 19ª Festa Literária Internacional de Paraty. A Flip começa neste sábado (27/11), às 16h, com a mesa de abertura Nhe’éry Jerá, que vai reunir cineasta Carlos Papá, liderança do povo guarani mbya, e Cristine Takuá, educadora, filósofa e artesã indígena.

A programação principal se estende até 5 de dezembro, reunindo convidados brasileiros e internacionais em 19 encontros virtuais. Entre os autores estão o chileno Alejandro Zambra, a cantora brasileira Adriana Calcanhotto, a escritora americana Alice Walker (autora de “A cor púrpura”), a sul-coreana Han Kang ( “A vegetariana”), o líder indígena brasileiro Ailton Krenak, o escritor francês David Diop (“Irmão de alma”), a romancista canadense Margaret Atwood (“O conto da aia”) e o poeta Leonardo Fróes, do Rio de Janeiro, que lança, durante o evento, o livro “Poesia reunida”.

A 19ª Flip prestará homenagem aos povos originários vitimados pela COVID-19. “Gente de várias florestas do Brasil, gente discípula das plantas”, declara o coletivo curatorial, coordenado pelo antropólogo Hermano Vianna e integrado por Evando Nascimento, escritor e filósofo, pioneiro na reflexão sobre literatura e plantas no Brasil. Evando lançará o volume de ensaios “O pensamento vegetal – A literatura e as plantas” (Civilização Brasileira).

“A temática literatura e plantas é inédita na teoria e na crítica literária, que sempre privilegiou a relação entre literatura e animais”, sustenta Evando Nascimento em sua obra.

O autor vai dialogar neste sábado, às 18h, na mesa 2, com o botânico italiano Stefano Mancuso – autor de “A revolução das plantas” e “A planta do mundo” –, com a mediação da escritora Prisca Agustoni.

“Costumo dizer que não foi o antropólogo Hermano Vianna quem me chamou, mas fui convocado por ‘minhas irmãs as plantas” (Alberto Caeiro), através dele. É o ‘chamado vegetal’, que Clarice Lispector muito bem ficcionalizou numa de suas crônicas. Primeiro fui convocado pelos animais, agora são os vegetais que me convocam numa viagem sem volta”, afirma o curador Evando Nascimento.

Mortos em decorrência da COVID-19, serão homenageados pela Flip Zé Yté,  guardião do conhecimento dos kayapós e colaborador central dos mais importantes estudos sobre a etnobiologia da tribo; Sibé Feliciano Lana,  artista plástico e escritor do povo desana; Higino Tenório, escritor, benzedor, especialista em arte rupestre, professor e fundador da primeira escola indígena do povo tuyuka; Maria de Lurdes Brandão, guardiã das plantas de cura do povo mura, representante da tradição de mulheres amazônicas que cuidam des plantas medicinais; Meriná, mestra de rituais de cura e benzimentos do povo macuxi; Alípio Xinuli Irantxe, mestre das flautas do povo manoki; e o cacique Domingos Venite, da maior área indígena fluminense, liderança na luta pela demarcação de terras.

A homenagem se estende a outras vidas ceifadas pela pandemia dedicadas à literatura e às artes: Nelson Sargento, Aldir Blanc, Zé de Paizinho (mestre do samba de aboio sergipano), as poetas Olga Savary e Maria Lúcia Alvim, o poeta Vicente Cecim e o escritor Sérgio Sant’Anna.

“O texto literário, sob forma de narrativa, poesia ou drama, em registro oral ou escrito, tem dado contribuição fundamental para o respeito e a valorização das diferentes formas de vida”, sublinha o conselho coletivo curador da Flip, também integrado por Anna Dantes, colaboradora da Escola Viva Huni Kuin há mais de 10 anos e uma das fundadoras do Selvagem – Ciclo de estudos sobre a vida;  João Paulo Lima Barreto, antropólogo do povo tukano, do Alto Rio Negro, fundador do Centro de Medicina Indígena, em Manaus; e Pedro Meira Monteiro, professor da Princeton University e um dos fundadores da oficina “Poéticas amazônicas” no Brazil LAB daquela universidade.

Com “Nhe’éry”, a Flip traz para o palco o encantamento das intrincadas relações entre humanos e não humanos que permeia o coração da escrita de Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Mãe Stella de Oxóssi, Bashô (Matsuo Munefusa), Amos Tutuola, Emily Dickinson, Waly Salomão, Ursula K. Le Guin  e Oswald de Andrade, entre outros.

“Olhando a partir de Paraty – sua cidade berço, lugar de encontros das águas com a terra –, buscamos na floresta a inspiração para a Festa deste ano: a diversidade, a colaboração em vez da competição, a capacidade regenerativa, a rede de comunicação estabelecida no ar e na terra entre as raízes das árvores e as hifas dos fungos, as alianças formadas por águas, pedras, plantas, ventos, insetos, pássaros e todos os viventes. Na pandemia, a humanidade reduziu sua mobilidade e experimentou temporalidade menos frenética, que são características mais associadas ao reino vegetal. Chegou a hora de pensar e aprender com as plantas”, reafirma o conselho curador da Flip

Três perguntas para Evando Nascimento

“A literatura vegetal pode nos curar da propensão autodestrutiva”

Como o senhor se inspirou para escrever as reflexões de “O pensamento vegetal – A literatura e as plantas”? 

Creio que se deve a minhas origens rurais em Camacã, cidadezinha no Sul da Bahia, região do cacau, onde vivi até 14 anos. Mas foi apenas em 2017 que me dispus a estudar com afinco o tema das plantas, inicialmente em três autores que me são caros:  Clarice Lispector, Fernando Pessoa e o pensador franco-argelino Jacques Derrida. Quando comecei, grande parte da bibliografia teórica, como os livros de Stefano Mancuso e de Emanuele Coccia, ainda não estava traduzida no Brasil.

Li esses e outros autores em francês e em inglês. Ao mesmo tempo, continuei investigando o tema na filosofia (Aristóteles, Martin Heidegger e Hegel, por exemplo), nas artes (o polonês-brasileiro Franz Krajcberg, mas existem diversos outros) e também na literatura (os modernistas Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade; os contemporâneos Edimilson de Almeida Pereira, Julia Hansen e Ana Martins Marques, entre outros). Visitas ao Jardim Botânico do Rio de Janeiro, onde moro há décadas, também foram decisivas. Passei a conhecer melhor o universo vegetal por meio do texto literário e com esse contato direto.

Esta edição da Flip toma por conceito, pela primeira vez, a temática “plantas e literatura”. Também está destacando a  palavra indígena “nhe’éry”, associada a ela. O que motivou a opção pela temática deste ano e como ela se articula com o seu livro?

Creio que a motivação primeira do coordenador do grupo curatorial, o antropólogo Hermano Vianna, veio da necessidade de se pensar diversas questões relacionadas às plantas e ao modo como as (mal) tratamos. Esse maltrato ocorre em toda parte do mundo, mas em especial nos países industrializados. No chamado Ocidente, por exemplo, há muito se deu a separação profunda entre os humanos, de um lado, e os outros viventes, ou seja, os animais e as plantas, de outro.

A racionalidade humana se tornou o pretexto para todo tipo de abuso e aniquilação animal e vegetal. Nessa escala de violência, as plantas são até mais vulneráveis, porque aparentemente não se movimentam nem se defendem, a não ser destilando substâncias tóxicas. Essa aparente imobilidade gerou o preconceito expresso no verbo “vegetar”, como sinônimo de inércia ou de debilidade física, quando etimologicamente o termo significa o oposto: vivificar, dar vida. Em textos de Clarice Lispector, por exemplo, as rosas aparecem como potências revitalizantes e o Jardim Botânico do Rio de Janeiro se torna o espaço em que a personagem Ana, que leva uma vida bastante monótona, sente uma espécie de êxtase, no conto “Amor” da coletânea “Laços de família”.

Já o termo “nhe’éry” designa em idioma guarani a mata atlântica, e os guaranis habitam a região de Paraty, onde a Flip é realizada. Como se sabe, diversas culturas indígenas têm muito mais respeito pelas florestas do que as culturas ocidentais. Além disso, possuem belas narrativas, expressas em seus cânticos, que são uma forma de literatura oral, e por isso alguns deles participarão desta Flip, desde a abertura do evento.

Como a literatura pode contribuir para despertar a consciência do planeta sobre a emergência da questão climática?

Há uma fábula de Esopo que expressa bem o modo irônico como a literatura nos ajuda a pensar questões que os negacionistas do clima preferem ignorar. Trata-se de “A corça e a videira”, que resumo a partir da edição da Editora 34, em tradução de Maria Celeste Dezotti. Uma corça estava fugindo dos caçadores e encontrou uma videira, embaixo da qual se escondeu. Depois que seus perseguidores passaram, ela comeu as folhas do arbusto. Em seguida, os caçadores retornaram e ela não tinha mais onde se esconder, porque a videira está desfolhada.

A corça então exclama (como se sabe, nas fábulas, os animais têm o dom da fala): “Bem feito para mim, pois eu não deveria ter maltratado a videira, minha protetora!”. Ora, esse é o recado de um texto literário muito antigo para os tempos atuais: se continuarmos a maltratar e a dizimar nossa vegetação, seremos punidos, por causa de nosso próprio descuido. Costumo lembrar que curadoria tem a ver com cura e com cuidado. Nós, curadores da Flip, trouxemos a literatura vegetal para nos curar um pouco dessa propensão, que no fundo é autodestrutiva. Precisamos ler e reler textos como esses de Esopo e de outros autores!.

“O pensamento vegetal – a literatura e as plantas”

  • Evando Nascimento
  • Civilização Brasileira
  • 350 páginas

“Semear, verbo intransitivo”

(trecho do livro “O pensamento vegetal – A literatura e as plantas”, de Evando Nascimento)

Na primavera de 2017, o Grand Palais de Paris realizou uma inédita exposição com o título de “Jardins”. Obras de diversas épocas se sucediam para dar uma visão múltipla das possibilidades de abordar artisticamente a vida vegetal: instalações, pinturas em técnicas variadas, livros ilustrados, vídeos, jardinagem, gabinetes de curiosidade, esculturas etc. Toda uma sensorialidade vegetal à disposição de quem se desse o tempo de justamente vegetalizar, ou seja, de aproveitar lentamente e com entusiasmo cada um dos artefatos disponibilizados ao público.

Simultaneamente, as livrarias parisienses colocaram para aquisição obras literárias, catálogos, livros de botânica e de paisagismo, incluindo-se aí publicações em francês e em inglês sobre o grande Burle Marx, o qual também teve importante retrospectiva em torno de seu trabalho em cartaz, entre 8 de junho e 29 de setembro de 2019, no Jardim Botânico de Nova York. No “Filme paisagem – um olhar sobre Roberto Burle Marx”, que lhe foi dedicado postumamente, sob a direção de João Vargas Penna (2018), ele conta que descobriu a flora brasileira numa estufa, quando estudava em Berlim.

Até então, nosso paisagismo ignorava as espécies nativas, em favor das de origem europeia, consideradas “superiores”. A partir disso, tudo mudou, tal como se pode testemunhar em seu sítio-museu, no Rio de Janeiro (reconhecido este ano como Patrimônio da Humanidade pela Unesco), e noutros lugares onde realizou projetos e trabalhos que marcaram uma “virada tropical” no paisagismo internacional.

Alguns escritores contemporâneos têm se dedicado ao universo exuberante das plantas. Ana Martins Marques publicou um delicado “O livro dos jardins” (2019), dividido em duas partes. Na primeira, poemas avulsos celebram a existência desses viventes que fazemos tudo por ignorar: as flores e plantas em geral. Na segunda, “poemas-jardins” são dedicados a mulheres poetas: a brasileira Orides Fontela, a norte-americana Sylvia Plath, a polonesa Wislawa Szymborska, a argentina Alejandra Pizarnik, a russa Marina Tsvetáieva, a austríaca Ingeborg Bachmann e a também norte-americana Laura Riding.

Essa relação entre mulheres e plantas é antiga, mas, nesse caso, vai além da simples vinculação do “eterno feminino” às flores, num simbolismo bastante tradicional e redutor. Na contemporaneidade, as e os poetas que abordam plantas o fazem desvinculando-as da mera simbologia e colocando-as como verdadeiras “atrizes”, ou melhor, actantes do drama da vida em geral.

É essa a marca diferencial do que chamo fitopoesia: na verdade, quem escreve os versos são os próprios vegetais, por meio de suas irmãs e de seus irmãos poetas. Entre tantas delicadezas vegetais, destacaria o seguinte poema da primeira parte de “O livro dos jardins”:

Desconheço
o nome das plantas

Mas também desconheço o nome
de boa parte de meus vizinhos

Ao contrário das pessoas
as plantas não ligam

Não me dirijo a elas pelo nome
mas também na verdade
não me dirijo a elas

Elas nada pedem e nunca reclamam
às vezes perdem muitas folhas ou apenas,
e em silêncio, morrem

Estão sempre mudando
nunca
se mudam

Estamos
por enquanto

neste pé

Destaca-se, em princípio, o anonimato das plantas. Ainda que todas as espécies que se deram ao conhecimento recebam designações científicas e/ou populares, os vegetais nunca ganham individualmente nomes, ao menos em nossas culturas ocidentais. Isso se deve ao fato de que eles, à diferença dos animais, quase nunca são percebidos como verdadeiros indivíduos. Cães e gatos, bem como animais silvestres em cárcere doméstico ou público, recebem até mesmo nome de gente: além do clássico Rex, do hilário Pluto, do célebre Knut (estrela de destino trágico no zoo de Berlim, na primeira década deste século), pode-se ouvir Igor, Katy, Max, Susana, Tião (famoso macaco do zoo do Rio, já falecido) etc., nomeando nossos “companheiros específicos” (para lembrar as espécies companheiras – “companion especies” – de Donna Haraway). Para nós, um abacateiro ou um pé de couve representa sua espécie e não a si mesmo individualmente.

A isso, as plantas respondem com a mais absoluta indiferença, enquanto os cães e os gatos estão sempre atentos ao modo como são chamados, sobretudo os primeiros. Esse silêncio das plantas (ao menos para nossos ouvidos, porque no fundo o fluxo da seiva no tronco e nos galhos produz, sim, algum som, para nós inaudível) é a marca do reino vegetal e, tanto quanto sua aparente imobilidade, ajudou a formatar o estereótipo de que as plantas apenas “vegetam”, estando mais próximas, portanto, do reino inerte das pedras (o qual também apenas em aparência é totalmente imóvel).

Vimos em capítulos anteriores o quanto essa inércia vegetal é falsa, servindo de argumento para o rebaixamento dos vegetais na perspectiva dos humanos e dos outros animais. De qualquer modo, na penúltima estrofe, por meio da conjugação dúbia do verbo mudar(-se), a suposta imobilidade das plantas é paradoxalmente questionada (“Estão sempre mudando”) e afirmada (“nunca/ se mudam”); ou seja, a cada estação mudam de roupagem, sem que aparentemente mudem de lugar. Mas o substantivo muda (não referido no texto) é indicativo de sua capacidade de mudança em duplo sentido: elas podem mudar de lugar, se suas mudas forem transplantadas, e portanto mudarão também sua própria estrutura física, com o passar do tempo.

A muda pode ser um galho a ser implantado noutro local até virar uma planta por inteiro, ou mesmo uma planta jovem, que é retirada do viveiro e replantada, para se desenvolver plenamente. Um dos componentes mais fortes do poema é, com efeito, certa incomunicação dos vegetais para conosco: embora cultivados e modificados pela espécie humana, permanecem em seu mutismo enigmático, desafiando nossa prepotente soberania. E assim, “Estamos/ por enquanto/ neste pé”, quer dizer, é por essa situação de incomunicação interespecífica que a planta se mantém “de pé”, como pé de goiaba, de açaí, de maçã ou de qualquer outra saborosa fruta.

Assinalo que, a partir da metáfora bastante concreta do jardim, a novela “A visão das plantas”, da autora angolana Djaimilia Pereira de Almeida (2021), também aborda a indiferença vegetal em relação aos humores humanos, pois às plantas só interessam o húmus, a água, o gás carbônico e a luz solar. Alheamento bem demarcado noutro poema da mesma coletânea de Marques, o qual fala de uma árvore que sempre floria, independentemente do que acontecia ao redor do mundo: “Floria sempre/ a cada ano/ indiferente aos acontecimentos”.

Já “A planta”, de Ferreira Gullar, publicado em sua última coletânea “Em alguma parte alguma” (2010) e retomado em “Toda poesia” (2021), faz também um paralelo entre o humano que ele é e uma planta de vaso ou mesmo uma planta qualquer, já que o espécime, em geral, reproduz à perfeição os traços de sua espécie, a parte valendo pelo todo específico. A despeito da indagação dubitativa da primeira estrofe, a diferença entre as espécies humana e vegetal é marcada pela cor esverdeada da segunda e também por sua ausência de fala.

Assinalo que as plantas são  verdes porque,  para  a  realização da fotossíntese, suas células contêm cloroplastos com clorofila; esse pigmento absorve mais o azul e o vermelho do espectro da luz solar, e em proporção menor o verde, que é em parte refletido, fazendo com que os vegetais exponham predominantemente esta última cor. Todavia, a estrofe seguinte lembra que, como dito acima, o fluxo da seiva no caule produz algum som, para nós imperceptível – nesse caso, o mutismo vegetal é só aparente:

Pode ser que ouvido
melhor que o meu
ouça-lhe a voz da seiva
a irrigar-lhe o caule

Mas a última estrofe acentua toda a diferença entre os dois corpos específicos: enquanto o poeta (espécime do Homo sapiens sapiens) tem “forma pronta”, a planta vive de muda, multiplicando suas folhas, que puxa do “ventre” como sabres ou os naipes de um jogador de cartas. Essa afirmação final é também dubitativa: a “forma pronta” dos humanos é só aparente, pois nós também retiramos unhas, cabelos e muitas secreções de nosso interior; ademais, não paramos de mudar, desde bebês até a idade senil, com muitas “mudas” de pelo e de pele, tal como os bichos e os vegetais, com seus pelos, couros, cascas e folhagens. Em suma, ou “em sumo”, há mais semelhanças entre nós e os vegetais do que sonha nossa vã (e bela) poesia.

https://www.em.com.br/app/noticia/pensar/2021/11/26/interna_pensar,1325996/evando-nascimento-lanca-livro-sobre-plantas-e-letras.shtml

‘As plantas vivem uma situação muito semelhante à dos indígenas, dos negros e dos mestiços pobres’, diz curador da Flip

Filósofo Evando Nascimento lança ‘O pensamento vegetal’, livro sobre a relação da literatura com a plantas em que analisa a obra de autores como Hegel e Clarice Lispector

Ruan de Sousa Gabriel

26/11/2021 – 19:31 / Atualizado em 27/11/2021 – 08:40

O filósofo Evando Nascimento, curador da Flip e autor de “O pensamento vegetal: a literatura e as plantas”.

Na coletiva em que foram apresentados os primeiros autores confirmados para a 19ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), no mês passado, o filósofo Evando Nascimento, um dos curadores do evento, causou estranhemento nos ouvintes ao afirmar: “nosso lugar de fala é vegetal”. A expressão “lugar de fala” se popularizou ao ser usada por militantes no movimento negro para reforçar a legitimidade de quem fala sobre opressões que experimentou na própria pele. Numa troca de e-mails com O GLOBO, Nascimento explicou que sua intenção ao reivindicar um “lugar de fala vegetal” foi denunciar a “fitofobia” e o “fitocídio”, ou seja o desprezo pelo mundo vegetal e a destruição em massa das plantas, “que se junta ao genocídio indígena e afrodescendente”.

Na contramão de uma tradição filosófica que se estende Aristóteles, na Grécia Antiga, a Heidegger, na primeira metade do século XX, Nascimento é um entusiasta da inteligência vegetal. Neste sábado, ele discute literatura e plantas com o botânico Stefano Mancuso, outro defensor da sabedoria verde, na Flip, que este ano ocorre em formato virtual. A relação entre a literatura e as plantas, aliás, é o tema do novo livro de Nascimento, “O pensamento vegetal”, lançado pela Civilização Brasileira. Em mais de 300 páginas, ele examina como as plantas aparecem na obra de filósofos, escritores e artistas como Hegel, Clarice Lispector e Frans Krajcberg. Ao GLOBO, Nascimento explicou como o mundo vegetal pode nos ajudar a reformular nossa concepção de inteligência.

— Nossa concepção de inteligência é individualista. Já as plantas pensam e agem coletivamente. Para mim, a verdadeira inteligência hoje está no modo como nos relacionamos com as alteridades vizinhas, plantas e animais, colaborando para que sobrevivamos todos — diz.

Numa das coletivas de apresentação da Flip, você disse: “nosso lugar de fala é vegetal”. O que isso quer dizer?

Considero a reivindicação do “lugar de fala” relevante, desde que não seja abusiva. A expressão sinaliza o desejo que os negros têm de serem ouvidos e de não continuarem a ser apenas representados por pessoas que não tiveram a experiência deles, boa ou ruim. Isso não implica calar outras falas, como se tornou uma opinião generalizada e irrefletida. Ao dizer “nosso lugar de fala é vegetal”, me referia ao fato de que a Flip ocorre em Paraty, uma região de Mata Atlântica. Também quis apontar que os vegetais são cidadãos de terceira classe entre os viventes. Mais ainda do que os tão maltratados animais, as árvores são abatidas sem dó, porque não contra-atacam nem gritam.  São existências fragilizadas ainda mais pelos poderes neofascistas. Em 2019, Bolsonaro disse que não lhe interessava nem o índio nem “a porra da árvore”, mas o garimpo. Essa é a expressão mais bem acabada de “fitofobia”. As plantas vivem uma situação muito semelhante à dos indígenas, dos negros e dos mestiços pobres, basta ver a atuação da polícia carioca.

O que é a “virada vegetal”?

Nas últimas décadas, houve algumas “viradas” culturais importantes, como a “virada pós-humana”, que se caracterizou por uma reflexão sobre a relação dos homens com as máquinas, a “virada animal”, que sublinhou a necessidade de repensarmos a nossa relação com esses outros viventes e a violência que lhes impingimos, e, mais recentemente, a “virada vegetal”. Não gosto da palavra “virada”, por vários motivos, o principal é que parece um fenômeno de moda. E não é. Nesses três exemplos, algo foi aprendido e é impossível retornar ao estado anterior. O antropocentrismo que rege nossas vidas humanas foi posto em questão. No entanto, a virada vegetal só é nova se se leva em conta apenas as culturas ocidentais. Para outros povos, não há novidade alguma. Os livros publicados por Davi Kopenawa e Ailton Krenak demonstram isso. Diversos saberes ameríndios e africanos têm outra concepção da existência, não separando radicalmente a espécie humana das outras. Nas próximas décadas, todos esses saberes não ocidentais, que foram sempre reprimidos, vão ter grande influência para as humanidades.

Por que temos mais facilidade em reconhecer a inteligência das máquinas do que a das plantas?

Cada vez mais os cientistas nos convencem de que as máquinas podem ter uma inteligência tão sofisticada quanto os humanos. Até a muitas espécies animais se atribui inteligência, como corvos, golfinhos e cães. Certamente porque, de algum modo, os bichos nos assemelham. Já as plantas não têm quase nenhum órgão que se pareça com os nossos. Parecem imóveis, quase sem vida. Certamente foi por essa aparência enganosa que o verbo “vegetar”, que na origem tinha um significado positivo (animar, vivificar) passou a significar uma vida em estado mórbido ou de coma. Ao longo da história ocidental os vegetais foram tratados como cidadãos de terceira classe: em primeiro lugar estão os humanos, em seguida os animais e por fim vêm as plantas. Botânicos contemporâneos têm provado com seus experimentos que as plantas são dotadas de uma inteligência e de uma sensibilidade que nada devem às de outras espécies. O italiano Stefano Mancuso tem um importante laboratório de neurobiologia vegetal, no qual faz diversos experimentos para demonstrar a capacidade incrível dos vegetais de resolverem problemas sofisticados. O rebaixamento ocidental em relação às plantas, o que chamo de fitofobia (horror ou desprezo pelas plantas) é estrutural e narcisista: elas não se parecem conosco, portanto achamos que não têm propriamente vida nem muito menos inteligência.

As plantas propõem uma outra concepção de inteligência?

Anthony Trewavas (cientista britânico) defende que a inteligência de uma espécie está ligada a sua capacidade de adaptação e de sobrevivência. Até determinado momento de sua história, a espécie humana demonstrou grande inteligência, adaptando-se e sobrevivendo nas regiões mais difíceis do planeta. No entanto, com o advento da revolução industrial, passamos a destruir aquilo de que dependemos para sobreviver: as florestas e os animais. Do lado das plantas, nada disso acontece. Sua capacidade de adaptação e de reprodução nos superam em grande medida. Nossa concepção de inteligência é individualista. Já as plantas pensam e agem coletivamente. Para mim, a verdadeira inteligência hoje está no modo como nos relacionamos com as alteridades vizinhas, plantas e animais, colaborando para que sobrevivamos todos.

Em “O pensamento vegetal”, você se debruça sobre a filosofia, a literatura e as artes em geral. Esses campos do saber são mais apropriados para descobrir o que pensam as plantas?

Não é que eles sejam mais apropriados, mas também sua contribuição a dar no debate. Filósofos, artistas e escritores têm produzidos trabalhos admiráveis nas últimas seis décadas, que servem para abalar os preconceitos antropocêntricos. Na filosofia, isso já começou com o “mais-que-humano” (Übermensch) de Nietzsche, e foi reinterpretado pelos pensadores da década de 1960 em diante. Mais recentemente, Emanuele Coccia e Michael Marder têm dado uma contribuição fundamental para redimensionar a existência das plantas. Nas artes, cito dois brasileiros de grande relevância para as reflexões clorofílicas: Frans Krajcberg e Luiz Zerbini. Krajcberg não só desenvolveu um vasto conjunto de obras a partir de resíduos vegetais como também se tornou um grande “artivista”, usando sua arte em defesa da Amazônia, do Pantanal e da Mata Atlântica. Exercitou o “artivismo” muito antes de o indígena Jaider Esbell tê-lo colocado na ordem do dia. A morte de Esbell foi trágica, entre tantos motivos, por ele desenvolver um trabalho decisivo para essa “virada vegetal”, expondo o modo como as culturas indígenas jamais desqualificaram as outras espécies como menos inteligentes do que a nossa. Uma perda irreparável.

Qual é a relação da literatura com as plantas?

Meus primeiros textos sobre literatura e plantas foram escritos a partir de poemas de Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa) e da ficção de Clarice Lispector. Nesses dois autores, destaquei uma relação empática com a flora. “O Guardador de rebanhos”, de Caeiro, é um lindíssimo poema em que ele questiona nossa relação abstrata com as plantas, defendendo a superioridade delas. Por exemplo: “Ah, como os mais simples dos homens/ São doentes e confusos e estúpidos/ Ao pé da clara simplicidade/ E saúde em existir/ Das árvores e das plantas!”. E a certa altura ele fala de “minhas irmãs as plantas”. Acho isso de uma força extraordinária: ao contrário da tradição metafísica ocidental, que tudo fez para separar os humanos das outras espécies, ele nos irmana aos vegetais. Já Clarice Lispector tem inúmeros textos em que as plantas são protagonistas. O mais conhecido de todos é sem dúvida o conto “Amor”, em que uma dona de casa típica dos anos 1950 fica perturbada ao ver no ponto de ônibus um cego mascando chicletes e acaba indo parar no Jardim Botânico do Rio, onde terá uma experiência de êxtase, em tudo distinta de sua vida cotidiana.

Que outros autores dão atenção especial às plantas?

Diversos escritores contemporâneos, em particular poetas mulheres, têm publicado livros notáveis, como é o caso de Louise Glück, vencedora do Nobel, autora do belo “The Wild Iris” (O lírio selvagem). No Brasil, temos Ana Martins Marques, “O livro dos jardins”, em que fala de girassóis, dentes-de-leão e cactos, mas também homenageia mulheres poetas como Sylvia Plath e Orides Fontela, oferecendo-lhes jardins líricos. Também cito Edimilson de Almeida Pereira, Josely Vianna Baptista, Leonardo Fróes, Júlia Hansen, Sérgio Medeiros e outros que também têm publicado textos em que temas vegetais comparecem. Ferreira Gullar também publicou um denso poema intitulado “A planta” em sua última coletânea. Em todos esses casos, ao tematizar as plantas, o texto literário amplia nossa sensibilidade para esses vizinhos cuja existência a maior parte do tempo ignoramos.

Você afirma que a urgência da publicação de “O pensamento vegetal” se deveu sobretudo “à tomada de poder pela extrema-direita no Brasil”, que “oficializou a necropolítica”. Qual a relevância política do pensamento vegetal?

Qualquer coisa que se faça hoje para defender a vegetação no planeta, bem como os animais que nela se abrigam, é uma atitude política em sentido estrito. “Política” vem do grego “pólis”, que significa “cidade”. Seria então preciso pensar uma pólis mais respeitosa com as outras formas de vida. Com o governo de extrema-direita, passou-se de uma política oficial protecionista da Amazônia, da Mata Atlântica e do Pantanal para uma política de incentivo à devastação, por meio da grilagem, do desflorestamento para usar os terrenos como pasto e da garimpagem ilegal, que é altamente poluidora. É o que chamo de “fitocídio”, a destruição em massa das plantas, que se junta ao genocídio indígena e afrodescendente. A política oficial agora é: quanto mais essas vidas forem precarizadas, melhor – até o ponto da aniquilação.

Serviço:

“O pensamento vegetal: a literatura e as plantas”

Autor: Evando Nascimento.
Editora: Civilização Brasileira.
Páginas:
350.

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