Textos críticos
linha a linha [desenhos-escritos]
poema-rio [grafismos ao correr da pena]

(apresentação do livro “linha a linha”)

desde a bela capa concebida pela também poeta e artista plástica jussara salazar, este novo livro de evando nascimento se oferece como obra, desdobra e des(o)bra – categorias caras à reflexão que há muito ele vem desenvolvendo em diferentes tipos de trabalho, de espaço e de  aterialidade, do ensaio à narrativa, do nanquim ao óleo e à aquarela, sempre burlando os limites que poderiam defini-los de modo unívoco. ritmando linhas ao modo de ondas que se vão abrindo e ampliando, ao mesmo tempo regular e  irregularmente, jussara assim figura (desfigura) o íntimo laço entre escrita e visualidade, intrínseco esboço de desenho e desejo – potente justo em sua incompletude e deambulação – que evando inscreve ao longo das páginas e telas sobre as quais se debruça, com as quais se defronta. escrever, inscrever, ex-crever, escavar – como quem puxa e relança fios de palavras e de imagens, lances de pensamento – é nelas por ele experienciado como gesto de fazer-mundos, a partir mesmo de uma materialidade gráfica e significativa que lhe serve de fundamento paradoxalmente instável. 

na capa, da capa, como abertura e soleira, quatro títulos diferentes se lançam ao leitor, superpostos de modo a armar em camadas suplementares esse gesto em que os signos se constituem em jogo de aproximação e diferença: linha a linha (desenhos-escritos) poema-rio (grafismos ao correr da pena). cada um desses sintagmas, em sua duplicidade, convoca e desestabiliza as ideias mesmas de nomeação, de classificação, de significado, reafirmando um valor simultaneamente formativo e performativo da linguagem em uso. através dele o autor se expõe como a(u)tor, cuja identidade se vai afirmando contraditoriamente como movimento êxtimo, também duplo, do mergulho intruso no “si mesmo” e no “outro” sempre fugidios. isso se evidencia tanto nesses jogos de composição sintagmática, que justapõem e tensionam o diverso, quanto nos efeitos de pontuação,  espaçamento, apagamento e rasura que desde aí conferem importância ao, em princípio, convencionalmente tido como mínimo – seja ornamento, seja detrito.

ao longo desse singular escrito-desenho, o trabalho com diferentes modos do mínimo vai produzindo um movimento de luz precária e intensa, de vagas e vagalumes, como evando nos convida a pensar, aproximando o caráter gráfico, sonoro e visual desses dois signos ao valor estético e político da reflexão de pasolini e seus leitores-filósofos. essa luz, contraposta à da iluminação totalizante e soberana que aprendemos a priorizar com a tradição clássica do pensamento, permite aproximar também caligrafia e cacografia, beleza e erro, error, como o a(u)tor faz ao lembrar da técnica pictórica do “desenho cego”, que ele desdobra também, na brincadeira da “cabra-cega”. Ao fazê-lo, indica o investimento tátil, corpóreo, afetivo de seu trabalho manual-visual e tensiona o presente da performance escrita com os rastros deixados pela memória. e encena, assim, a
imagem-escrita como cruzamento de temporalidades distintas e exercício de um pensamento em estado de infância – de originação e reoriginação insistentes e constantes.

celia pedrosa é professora de literatura comparada no programa de pós-graduação em estudos de literatura da universidade federal fluminense e pesquisadora do cnpq. autora e coorganizadora de diversos livros nacionais e internacionais sobre poesia contemporânea, entre os quais “ensaios sobre poesia e contemporaneidade”
(eduff, 2011)