Textos críticos
Cantos profanos (Contos)

“TENTAÇÃO DOS SANTOS”: PECADO, CONFISSÃO E PERDÃO NOS CANTOS PROFANOS

POR ANDRÉIA PENHA DELMASCHIO*

“Tentação dos santos”, conto que abre o livro Cantos profanos, de Evando Nascimento, constitui-se da revelação de um ato de violência sexual, discurso que dispõe unicamente do ponto de vista do homem que narra. Feita ao mesmo tempo a um Padre e ao leitor, a confissão vai infundindo paulatinamente a dúvida quanto a um suposto desejo, por parte de sua vítima, de ser subjugada. Todos os sinais de medo e rejeição ao ataque, dados pela menina, são interpretados pelo seu algoz (ao menos é o que ele declara) como indícios de consentimento para as investidas sexuais. É algo que se nota também em diversos discursos misóginos

produzidos e reproduzidos diariamente em grande parte da mídia nacional**. Nas palavras do violentador:

(…) pois regalou as pupilas de gazela para mim, seu cio, de noite é que atinei o vício, palpitei, aproveitei a cunhada na missa, (…) em lugar de amaciar com mimos, fui reto ao assunto, uns desmesurados centímetros, bem grosso, rígido, perdoe o despudor, tenho orgulho, ficou sem fôlego, desejando muito, logo vi, mas, com pavor das primícias, o que não se aguenta de prazer, fingiu que não queria, a bandidazinha, pois ansiava, amuou, comecei a tocar, uma, duas, três, até o ah, ih, oh, um alarido, brava cantoria, como se muitos de uma só vez, boca não disse palavra, consentia, mudinha, nem desviava o olhar, tresviu o jato branco, se queria, claro que sim, mas negaceava, ares de fêmea (…) dia seguinte recomecei o manejo, aproveitei a feira do sábado, novamente sós, nós, podia tudo ter contado, lá ela a minha cunhada, mas escondeu, quer dizer, continuava incitando, tresmalhava assim, vislumbrei o banho num trapinho, me contive, saiu vestida, baixei a blusa, mamei os limõezinhos, mais pra pequenos mamões, da fruteira tudo se desfruta, não é mesmo, relutou bastante, podia ter puxado o zíper da saia, num golpe, contentei chupando o fruto de vez, escoiceava, Não quero machucar, eu disse, Está me machucando, respondeu. (Nascimento, 2014, p. 16-17)***.

O fato de o leitor contar apenas com o relato do homem, além de remeter diretamente à realidade de um patriarcalismo violento, em que mesmo as supostas verdades da vítima, em geral, são veiculadas por uma voz outra, que não a sua, também é responsável por instaurar, de modo sutil, a dúvida sobre os limites entre medo e desejo.

A referência ao poema de Carlos Drummond de Andrade “Caso do vestido”, por meio do verso “boca não disse palavra”, intercalado aqui diretamente do discurso de um homem que subjuga uma mulher, amplia e reforça a atmosfera já tão naturalizada da opressão e do poder do macho. Contudo, no poema quase épico de Drummond, a voz que narra a humilhação a que se submete é da própria mulher, que é rejeitada, sofre, perdoa e, por fim, volta a se submeter aos jugos do mesmo homem que a fizera sofrer. Ali se trata de uma mulher que reproduz um comportamento machista já internalizado, naturalizado, e que a ambiência faz parecer uma situação inescapável para ela.

Em “Tentação dos santos”, diferentemente, nenhuma voz é dada à mulher. Toda e qualquer dúvida que paire sobre as reais circunstâncias do que é narrado por Patrício dos Santos segue na dependência da palavra dele, a única de que dispõe o leitor. O ambiente de opressão é evidente, porém menos naturalizado que no poema de Drummond, texto que, se suscita sentimentos de indignação, é justo devido ao fato de a própria mulher pregar a si e às filhas que a ouvem a supremacia do pater familias:


Nossa mãe, o que é aquele
vestido, naquele prego?
(…)
Minhas filhas, boca presa.
Vosso pai evém chegando.
(…)
Era uma dona de longe,
Vosso pai enamorou-se.
me deixou com vosso berço,
foi para a dona de longe,
(…)
Olhei muito para ela,
boca não disse palavra.

Peguei o vestido, pus
Nesse prego da parede.
(…)
Ela se foi de mansinho
e já na ponta da estrada

vosso pai aparecia.
Olhou para mim em silêncio,

Mal reparou no vestido
e disse apenas: Mulher,

põe mais um prato na mesa.
Eu fiz, ele se assentou,

(Andrade, 1996, p. 96)


Já no conto de Nascimento, a narração de atos e sensações parecem pretender conduzir o leitor a um território sobre o qual pairam muitas nebulosas. O termo “tentação”, por exemplo, traz em si uma ambivalência, por fundir numa só palavra tanto a ação daquele que “tenta”, quanto a sensação daquele que é “tentado”. De acordo com o Dicionário Aurélio, “tentação” é tanto o “ato” como o “efeito” de tentar, uma “disposição de ânimo para a prática de coisas diferentes ou censuráveis.” A terminação dúbia da palavra (em -ação) concorre para a criação da atmosfera também dúbia que se estabelece na narrativa. Ainda
segundo o Aurélio, “tentar” é tanto “seduzir” quanto “deixar-se seduzir”****.

É importante deixar claro que não se trata simplesmente de, na leitura do conto, assumir-se um lado ou posição. Sabe-se que os variados tipos de discurso (não só o ficcional) criam e alimentam diferentes tipos de fantasia. Assim, há um movimento em que, expondo delicadas questões de ordem ética, a literatura pode ser não apenas a ponta de um iceberg discursivo, mas também, e ao mesmo tempo, a provedora de uma vasta rede de discursos – a qual, nesse caso específico, engloba a complexa questão do desejo.

De modo geral pode-se afirmar que, em diversas sociedades, uma culpa de origem religiosa costuma cercar qualquer ato sexual. Diante dessa constatação, deve-se levar em conta que o fato de a menina querer ou não querer pode tornar-se uma dúvida até mesmo para ela própria, o que – é bom deixar claro – não nega a violência do estupro. Ao contrário: a monstruosidade do ato revela e habita um espectro cultural maior, que envolve a condição a que a mulher é submetida em diversas sociedades, e que passa, sem dúvida, pela opressão sexual de fundo religioso e moral.

O conto de Nascimento explora a promiscuidade, para muitos insuspeitada, das relações entre sexo e religião, ficando ao encargo do leitor perscrutar as inúmeras implicações que podem advir dessa mescla, tanto quanto o resultado dela na vida cotidiana. E é por meio da confissão feita ali que se percebem os inarredáveis liames entre os discursos erótico e religioso, além da relação entre pecado e perdão:

(…) Deus me livre, acordei palpitando de novo, me via já debaixo da terra, no outro dia era domingo, jornada do senhor descanso, a cunhada foi com o filho pro sítio, me deixou cuidando da casa até segunda, fiava por demais, eu os pelos cofiava, a danadinha podia prevenir, continuou calada, estudando tabuada e se rindo, vixe, apelei pra todos os santos da Igreja, até pros de fora, quero, não quero, meu Pai eterno, me valei, tomei banho frio, tentei mais uma vez com a mão, o tesão, o senhor me perdoe, não passava, revinha pior, mais caudaloso, agora tem essa história de sacerdotes com meninos, os anjinhos de Deus, mas não é igual, estava em sossego, já disse, o Satanás atazanou, eu nada cogitava, veio em forma de cachorrinha, lutei com forças, até as que não tinha, pensei em pegar ônibus, voltar pra capital, dar um tempo, maturar ideias, fracassei, a carne é triste, fraquíssima, descontrolada, daí essa jaculatória, imploro clemência a todos os sãos, Gregório primeiro (…) (Nascimento, 2014, p. 17-18).

Há, no texto, interseções notáveis também com a obra do poeta baiano Gregório de Matos, conterrâneo do autor dos Cantos profanos. Para além do nome do santo ao qual é dirigido prioritariamente o pedido de perdão – “imploro clemência a todos os sãos, Gregório primeiro” (p. 18) –, a referência à obra de Gregório de Matos é ainda mais explícita no seguinte trecho: “pequei talvez, Senhor, mas nem porque pequei de Vossa imensa glória me despeço” (p. 17).

Padre jesuíta, o Boca do Inferno, como era conhecido, nos legou uma obra singular, da qual faz parte uma série de poemas satíricos e outros fesceninos, cuja fama, espalhada graças à sua divulgação oral, concorreu, ao lado de fatos de uma não menos singular biografia, para que o padre obsceno abandonasse a cena religiosa. Após séculos de recalque crítico e editorial, apenas a partir da década de 1960 foram trazidas a público mostras mais completas da sua produção, das quais enfim passaram a constar os textos pornográficos, que sem dúvida vão alcançar realce ainda maior no contraste com as partes religiosa e lírica da obra.

O traço que se quer destacar, porém, neste curto diálogo da poesia gregoriana com “Tentação dos santos”, é o intrincado liame entre pecado e perdão, vínculo que, além de aparecer em conjunto nas diversas facetas poéticas da obra do Boca do Inferno, foi sintetizada de modo muito bem acabado no seguinte soneto:


Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,
Da vossa piedade me despido,
Porque quanto mais tenho delinquido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto um pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido,
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida, e já cobrada
Glória tal, e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na Sacra História:

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada
Cobrai-a, e não queirais, Pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.

(Matos, 1990, p. 69)


Endereçado a Deus, o pedido de perdão resvala em uma certa chantagem, tendo em vista que a voz lírica expõe como argumento central, para provar o merecimento da remissão, justamente o pecado. Trata-se da mesma alegação feita pelo narrador do conto de Nascimento: “só o pecado redime, primeiro precisa pecar muito pra depois ser perdoado, até ser beatificado e por fim virar santo” (p. 19).

Num paradoxo típico da relação pecado/perdão, o que ressalta no poema de Gregório de Matos é a própria formulação do pedido, já que a razão para perdoar se encontra na existência mesma do pecado, por um lado, e no dom divino de perdoar, por outro. Ao pecador cabe apenas lembrar a Deus a existência do complexo mecanismo, para que seja acionado.

A voz lírica, durante a jaculatória argumentativa e chantageadora, praticamente afirma, sob a máscara da contrição, a necessidade de reconhecimento da reciprocidade do ato: o perdão só pode existir graças à existência do pecado. Por extensão, Deus, o remissor, tem a sua existência coatada à existência do pecador. Se o pecador depende do perdão, a recíproca também é verdadeira, o que transforma a falta cristã numa virtude – ou mesmo numa condição da cristandade. Logicamente, um verdadeiro cristão não é apenas aquele que peca, mas aquele que sabe pedir perdão, reafirmando, por meio das suas atitudes, a existência e a onipotência de Deus.

Dessa demonstração poética de reconhecimento da complexidade da relação pecado/perdão provém talvez o fato de soar irônica a declaração que se afirma ter sido dada por GM quando de seu declínio da batina:

Poucos dias antes pretendeu este Prelado com piedosas mostras persuadir ao poeta que tomasse ordens sacras, para conservar-lhe os cargos; mas ele respondeu com inteira resolução que não podia votar a Deus aquilo que era impossível cumprir pela fragilidade de sua natureza; e que a troco de não mentir, a quem devia inteira verdade, perderia todos os tesouros e dignidades do mundo. (Rabelo, 1969, p. 1702)

Retomando-se a questão relativa ao verbo tentar, destacada anteriormente, pode-se ainda afirmar que na “tentação da inocência” o sentido mais tradicional de inocência se mantém? Ou seja, é a inocência mesmo que tenta e atrai, ou será justo o que há nela de “tentação” que atrai? Mais ainda: ontologicamente, estará a expressão “tentação da inocência” indicando a tentação que há na suposta inocência ou a inocência que há na tentação?

Na “Tentação dos santos”*****, como o título mesmo indica, ou, como aparece na expressão usada pelo narrador “tentação da inocência”, tudo se desenvolve em torno de termos que cobrem ao mesmo tempo dois polos tradicionalmente tidos como bem mais que opostos – incompatíveis: a tentação (pecado) e a pureza (santidade). A iniciar pelo uso da palavra “jaculatória”, que designa, por um lado, os “mistérios gozosos” (orações curtas e fervorosas, lançadas pelos crentes como se em jatos – do latim: jactu), e que se liga a outras, de uso mais estrito no léxico dedicado ao campo sexual, como “ejacular”, lançar esperma: “fracassei, a carne é triste, fraquíssima, descontrolada, daí essa jaculatória, imploro clemência a todos os sãos” (p. 18).

Seguem-se ainda expressões como o “sacro nome”, enlaçando de um lado o sagrado e, de outro, pelo teor sensual da confissão, o profano, ao referir, de modo ambivalente, o sacro – osso das partes baixas, próximo das zonas erógenas: “violência, seu nome é virilidade, não pronuncio seu sacro nome em vão, meu Espírito Santo, e sei que a Madre Igreja está perenemente assentada em fundamentos inabaláveis como a fé” (p. 18). O vocábulo “madre”, contagiado historicamente pela ambivalência, indica, de um lado, a chefe das freiras, mulher devotada à religião, por extensão à pureza, à castidade e à santidade, e, por outro, o útero, núcleo da procriação, situado no espectro da sexualidade.

O ato violento mesmo se dá num intervalo sagrado: “aproveitei a cunhada na missa” (p. 16), mas não é de se desprezar o fato de que, para a “reles cadelinha” (p.17) – é assim que o abusador se refere à menina! –, a violência sofrida absurdamente já não é um ato isolado, nem um marco especialmente negativo na sua trajetória de vida: ela viera para a cidade em fuga da violência física que sofria por parte do pai e vive então numa casa em que trabalha em troca de comida, a casa da cunhada do narrador-estuprador, Inácia, cujo nome significa “norma de serviço, prescrição legal, regulamento”. Ou seja, é antes do estupro (e depois dele, como indica o desfecho da narrativa) que a sua vida é invalidada: ao escapar temporariamente da vigilância da norma (inácia) e do peso do trabalho escravo – “Inácia maltratava a guria” (p. 16) –, a menina entra para outro campo de subjugação. Os poderes não deixam vácuo entre si, antes se alternam na exploração da força de mais aquele corpo.

Aliás, o palavreado beato que conforma a jaculatória confessional de “dos Santos” soa cínico, por se tratar de uma confissão de estupro, confusão entre os campos que, por fim, faz aderir um tom cômico à religiosidade trazida à baila. Revela o narrador, na sua profana confissão:

por volta do meio-dia serviu o almoço, malcomi, só tinha olhos pras coxas e pros mamõezinhos, a sobremesa, arrastei sem dó nem oh, pra cama, passei mãos, língua, abri as pernas, a buça, a bussantinha já peludinha, lutava mas não gritava, nem um pio, queria, sim, tomei tento, queria, fui rompendo estrada e muro, abri largo caminho, por quanto tempo, a verga, o negócio, o rijo engenho aplicado com arte, aprendiz não sou, assinalado varão, já sabe, carne nova, crua, fartei riscando indigestão, enfarte, quanto mais arredia mais saborosa, a presa (…) quer dizer, ao fim gemia (…) a bonequinha partida choramingava no canto, beijei, fiz carinho, quem mandou?, tremia de febre, banhei, dei chás, todos os que havia, consolei mais do que fui consolado (…) (Nascimento, 2014, p. 19).

A palavra “buça”, redução de “boceta” (vulva) ecoa no neologismo “bussantinha” (p. 18). Este, por sua vez, tanto simula um diminutivo de buça, quanto traz, na composição da palavra, por derivação, uma ligação com o termo “santinha”, espalhando assim, pela narrativa, a ideia de santidade, entranhada no léxico sexual.

O narrador violador tenta, ao seu modo, provar a sua santidade, argumentando que foi seduzido pela menina, que, por sua vez, seria o agente da “tentação”: “de inocente não tinha nada, nem Imaculada, Virgem Maria, muito menos minha Sant’Ana, já nasceu com a sina, cria bastarda de ancestral culpada, Eva, o Mal do mundo, ovelha pra sacrifício dos homens, fui vítima em vez de carrasco” (p. 15).

A confissão, gênero discursivo escolhido para a construção da narrativa, é revelada, desse modo, no seu aspecto ambivalente, já apontado por Foucault no volume I da História da sexualidade: é por meio do discurso confessional que em geral se espera deslindar os próprios pecados, para que se possa assim receber a posterior remissão – como ocorre no poema de Gregório de Matos.

Conforme nos lembra Jacques Derrida,

Há, sabemos bem, máquinas de fazer confessar. E há os que amam isso. A polícia, a inquisição, os inquisidores, os procuradores e os algozes de todos os tempos conhecem bem essas máquinas de extorquir as confissões. Sabem também do prazer jubilatório que podem ter no manuseio dessas máquinas, na declaração extorquida, no arrancar a confissão mais do que no conhecimento da verdade, mais do que no saber aquilo a que a confissão, como se supõe, refere-se. Na tradição familiar e imemorial, os que manipulam as máquinas de confessar se preocupam menos com a falta cometida do que com o prazer que obtêm em exigir, até mesmo em ditar a confissão. (Derrida, 2004, p. 70)

Retomando-se a leitura foucaultiana do engendramento entre sexo e poder, percebe-se a importância desse tipo de discurso. Desde que se tem notícia da confissão cristã, o sexo sempre foi seu principal motivo. E é de se notar um interessante mecanismo de mão dupla: por saber, de antemão, da feição de coisa proibida que o sexo tomará no relato confessional, ele se torna, desde bem antes, para aquele que irá confessá-lo, pecaminoso. A lei que será imposta a ele o torna antecipadamente proibido. A prática sexual, por seu lado, adianta copiosamente o momento da confissão. Um só dispositivo de poder liga teoria e prática, passando o sexo, na confissão, a encenar-se primordialmente na forma discursiva, ainda que íntima e/ou monológica.

Ora, a confissão é um ritual de discurso onde o sujeito que fala coincide com o sujeito do enunciado; é, também, um ritual que se desenrola numa relação de poder, pois não se confessa sem a presença ao menos virtual de um parceiro, que não é simplesmente o interlocutor, mas a instância que requer a confissão, impõe-na, avalia-a e intervém para julgar, punir, perdoar, consolar, reconciliar. (Foucault, 1982, p. 61)

Portanto, a confissão é também um meio de vazão para a sexualidade, que é trazida à tona na oralidade: esta não é mais simplesmente recalcada ou ignorada; é exposta, elaborada e ordenada para um melhor domínio e exploração da sua força, num planejamento o mais previsível possível do seu percurso pela sociedade.

Daí, enfim, o fato de o ponto importante não ser determinar se essas produções discursivas e esses efeitos de poder levam a formular a verdade do sexo ou, ao contrário, mentiras destinadas a ocultá-lo, mas revelar a ‘vontade de saber’ que lhe serve ao mesmo tempo de suporte e instrumento. (Foucault, 1982, p. 17)

A confissão guia na totalidade a narrativa de “Tentação dos santos”, sendo justo o violador das leis aquele que sente a necessidade de confessar-se perante uma instância ideal e diante da qual parece aguardar julgamento. No fundo, essa instância legal imaginária, representada externamente ali por um “Padre”, encontra-se internalizada no sujeito confessor, que leva a se chocarem, menos que o seu modo de agir e pensar com o de um outro, ações e pensamentos próprios com outros ação e pensamento também seus, uns reprimindo os outros.

Em Vigiar e punir – uma revisão histórica da violência -, entre outras considerações acerca das transformações sofridas pelos mecanismos de poder, Foucault mostra como o corpo físico deixou, nos últimos séculos, de ser o objeto principal da penalização, tendo sido a dor, como instrumento de castigo, substituída  aulatinamente. “O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos”*******.

No entanto o corpo, que vai sendo aos poucos abandonado enquanto alvo direto do castigo, passa a objeto de uma rede de relações e coerções muito mais complexas, que se comunicam reforçando a função do corpo enquanto objeto de saber. Uma certa “penalidade do incorporal” aviltaria a vida sem passar necessariamente pelo ultraje direto do corpo.

Assim, modernamente, o conjunto dos métodos punitivos se estende para além do puramente jurídico, não sendo apenas consequência imediata dele, passando a depender também de outras formas de poder e de saber, e disseminando-se em todas as instituições e formas de relações, sociais ou individuais. De casa à fábrica, da escola ao templo, cada mínimo ato é regido e vigiado; cada desvio é passível de ser sumamente castigado no interior do seu próprio agente, por sua consciência ou pelo seu inconsciente.

O paradoxo que envolve pecado (ou crime) e confissão, tanto quanto culpa (ou erro) e perdão, perdição e salvação, inocência e tentação é percebido pelo narrador:

(…) não passava dos catorze, pedia sorrindo o que ofereci em prantos, admirável milagre, juro, Padre, por tudo o que é sagrado, havia até uma aura em torno, o senhor é novo na paróquia, está me conhecendo agora, e mais, a putinha queria, nem experiência tinha, exalava desejo inato, destino de meretriz, creio como na cruz, conheço o pecado, abaixo do madeiro onde Jesus, né não?, a tentação da inocência, assim nomeei a coisa, antes de falar com o senhor, tanto tempo já passado, a tentação da inocência, embora se chamasse Das Graças, de inocente não tinha nada, nem Imaculada, Virgem Maria, muito menos minha Sant’Ana, já nasceu com a sina, cria bastarda de ancestral culpada, Eva, o Mal do mundo, ovelha pra sacrifício dos homens, fui vítima em vez de carrasco (…) (Nascimento, 2014, p. 15).

Com a opção por vocábulos comprometidos de maneira radical com ambos os campos (religioso e sexual), além da paródia de expressões e orações consideradas sagradas, o narrador cria um jogo em que se ligam as duas pontas de uma via discursiva que, para alguns, jamais deveriam se tocar, por representar heresia.

Entretanto, o que o conto descortina é antes de tudo a mistura, a raiz híbrida dos vocábulos, a sua contaminação no nascedouro, o que expõe, por extensão, o entrelaçamento dos conceitos, das sensações e, de modo mais amplo, dos campos de pensamento em que ainda se almeja manter separados esses dois territórios, como se em incompatíveis arquivos.

Desse modo, todos aqueles significantes ambivalentes deslizam entre um e outro campos, para se encontrarem numa espécie de síntese, ao fim do texto.

No nível frasal, intercalada no relato confessional aparece inclusive uma paródia de parte da oração de São Francisco: “consolei mais do que fui consolado” (p. 19), em que, ao verbo consolar, adere-se um segundo sentido, buscado na acepção sexual do substantivo “consolo”, significando dildo, substituto artificial do pênis.

Merece destaque aqui a bela oração atribuída (erroneamente, ao que tudo indica) a Francisco de Assis:********

Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz.


Onde houver ódio, que eu leve o amor;
onde houver ofensa, que eu leve o perdão;
onde houver discórdia, que eu leve a união;
onde houver dúvida, que eu leve a fé.

Onde houver erro, que eu leve a verdade;
onde houver desespero, que eu leve a esperança;
onde houver tristeza, que eu leve a alegria;
onde houver trevas, que eu leve a luz.

Ó Mestre, fazei que eu procure mais
consolar, que ser consolado;
compreender, que ser compreendido;
amar, que ser amado.

Pois é dando que se recebe;
é perdoando que se é perdoado
e é morrendo que se vive para a vida eterna.


Num outro conto de Cantos profanos, intitulado “Demo”, o narrador, contra tudo, decreta: “Onde houver felicidade, que Eu leve a angústia. Onde houver harmonia, que Eu leve a discórdia. Onde houver tranquilidade, que Eu leve o desassossego. Onde houver esperança, que Eu leve o desespero…” (p. 64). Enquanto a oração adotada e assumida pelos franciscanos faz a exaltação do dom, o “Demo” (anagrama imperfeito de dom) nega, abala e rasura.

Porém, é curioso notar que, por vezes, interpreta-se a assertiva “é dando que se recebe” como uma proposta mesquinha de troca de favores. Os versos da oração, contudo, vão além, ao declarar o ato de receber no próprio ato de dar. Não se trata de dar para ganhar em troca; antes, no ato desprendido mesmo de dar é que está o recebimento (é dando – é ao dar e ao dar-se (dando e dando a si) – que se recebe).

Formulando melhor: o que o dom afirma é que: o que se tem a receber é a própria possibilidade de dar. O dom é justo aquilo cujo recebimento só se pode afirmar se ele é posto em prática. Mais uma vez, é ao dar que se recebe, de uma maneira aparentemente paradoxal e por vezes ininteligível ao senso comum, que tudo valora e capitaliza.

Comparece aí a paródia do canto “Demo”, que inverte necessariamente a lógica cristalizada em torno tanto da oração quanto da figura do santo/homem Francisco de Assis: desde que toda fé, paz e harmonia desejadas na famigerada oração não foram suficientes, enquanto propostas, para a sua realização no mundo, a virada desconstrutora da paródia desestabiliza, revolucionando o modo de pensar sobre a oferta, o presente do dom, mostrando assim uma outra faceta, que se faz necessária justo lá onde a paz e o amor se engessaram em vocábulos e propostas enfraquecidos: “onde houver harmonia, que eu leve a discórdia”. Se a harmonia é sinal de morbidez, a discórdia surge como nova proposta. Quando a paz é sinônimo de indiferença ou de medo, justo aí é preciso, ainda uma vez, impor-lhe um abalo.

O que poderia ser uma simples reversão sem mais consequências entre dois elementos expõe antes a lógica paradoxal em que, de fato, só o pecado redime. Afinal, que necessidade haveria do perdão, se não existisse o pecado? O divino ato de perdoar se liga ao ato humano de pecar e como que dele depende, amarrando-se um ao outro de forma inarredável.

Descendo portanto, simultaneamente, pelas raízes dos dois campos semânticos, sagrado e profano, o texto finda com o termo “Padre”, numa coda que, por sua vez, recupera a ambivalência entre a ideia de santo ou representante de Deus (sagrado, puro, divino, assexuado) e aquele outro homem, o qual, por meio do sexo, engendra (profano, impuro, humano, sexuado): o pai.

A imbricação etimológica de padre e pai revela mais que uma simples correlação linguística; ela clareia radicalmente o nascedouro comum de ambos os territórios, relação em geral escondida pelo princípio de naturalização, que cega à medida que aproxima os elementos dos olhos: “no inferno não creio, nos céus, sim, pra sempre bendito, fé no Eterno, louvado seja, não é, Padre?” (p. 19).

Como acontece com os demais vocábulos ambivalentes acima arrolados, por todo o texto se nota o comprometimento da “pureza”, a impossibilidade de separação das áreas.

A profanação, que se vinha mantendo longe e mesmo oposta à sacralidade, de repente é reconhecida na sua relação com o campo sexual. Assim, a ordem desses saberes (e poderes) tremula à vista do leitor, sofrendo um forte abalo sísmico (ou orgástico) em mais esse canto profano.

REFERÊNCIAS

AGÊNCIA PATRÍCIA GALVÃO. Disponível em: http://agenciapatriciagalvao.org.br. Acesso em: 20 ago. 2017.

ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 1996.

CARTA CAPITAL. No Brasil, um estupro a cada 11 minutos. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/no-brasil-um-estupro-a-cada-11-minutos. Acesso em: 17 ago. 2017.

DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Tradução Cláudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

DERRIDA, Jacques. Papel-máquina. Tradução de Evando Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2004.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. Tradução Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, v. I, 1980.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1982.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Tradução Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1995.

MATOS, Gregório de. Obra poética. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1990.

NASCIMENTO, Evando. Cantos profanos. São Paulo: Biblioteca azul, 2014.

RABELO, Manuel Pereira. Vida e morte do excelente poeta lírico, o doutor Gregório de Matos e Guerra – Crônica do viver baiano seiscentista. Salvador: Janaína, 1969.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007.

* DELMASCHIO, A. P. “Tentação dos santos”: pecado, confissão e perdão nos Cantos profanos. Ética, estética e filosofia (e-book). ALVES, Sílvio César dos Santos; CEI, Vitor. DIOGO; Sarah Maria Forte (org.). Rio de Janeiro, 2018. p. 23-37. Disponível em: http://www.abralic.org.br/downloads/e-books/e-book11.pdf . Acesso em: 5/5/2019.

** Acerca da cultura do estupro no Brasil e de dados mais recentes, conferir: AGÊNCIA PATRÍCIA GALVÃO. Disponível em: http://agenciapatriciagalvao.org.br. Acesso em: 20 ago. 2017.

*** A partir desta, todas as citações sem identificação de obra devem ser entendidas como retiradas de: NASCIMENTO, Evando. Cantos profanos. São Paulo: Biblioteca azul, 2014.

**** FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994, p.1943.

***** O nome escolhido para o personagem que narra (José Patrício dos Santos) faz ecoar e amplia o sentido prévio da expressão “tentação dos santos”, que intitula o conto, reduzindo-a de toda conotação religiosa para um espectro muito pessoal e quase nulo de significação: trata-se agora da tentação provocada (e sofrida?) por ele.

****** FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994, p.1082.

******* FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 16.

******** Disponível em: http://www.franciscanos.org.br/?p=24385

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“TERRA À VISTA”: A CONDIÇÃO HUMANA NOS CANTOS PROFANOS, DE EVANDO NASCIMENTO

POR ANDRÉIA PENHA DELMASCHIO*

Em seu livro A condição humana, Hannah Arendt analisa as transformações ocorridas ao longo da história nas capacidades laborais do homem, tanto quanto estabelece a crítica de diversos pensadores modernos acerca das distinções, por exemplo, entre trabalho e obra. Em dada altura de suas reflexões, a pensadora afirma:

“A mudança mais radical da condição humana que podemos imaginar seria uma emigração dos homens da Terra para algum outro planeta. Tal evento, já não inteiramente impossível, implicaria em que o homem teria de viver sob condições, feitas por ele mesmo, inteiramente diferentes daquelas que a Terra lhe oferece. O labor, o trabalho, a ação e, na verdade, até mesmo o pensamento como o conhecemos deixariam de ter sentido em tal eventualidade. Não obstante, até mesmo esses hipotéticos viajores terrenos ainda seriam humanos; mas a única afirmativa que poderíamos fazer quanto à sua ‘natureza’ é que são ainda seres condicionados, embora sua condição seja agora, em grande parte, produzida por eles mesmos.” (ARENDT, p. 18)

Algumas das hipóteses então lançadas nessa parte do livro se confirmam com o passar do tempo, especialmente com a corrida espacial, desenvolvida mais freneticamente a partir do ano de lançamento do livro de Arendt, as quais os diversos eventos que envolvem a exploração do espaço a partir da década de 1960, com a chegada do homem à Lua, vão solidificar.

Atualmente, uma empresa holandesa lançou o projeto denominado Mars One. Desde 2013, cidadãos de todo o globo já se inscrevem nesse que se anuncia ao mesmo tempo como programa de tevê e programa espacial, com o intuito de colonizar o planeta Marte a partir de 2025. O projeto, que não conta com verbas governamentais, traz no nome a promessa de ser o primeiro de uma série, e oferece viagem só de ida em direção aos módulos de vivência que, promete, serão implantados em solo marciano pouco antes da ida dos primeiros colonos.

Embora o idealizador do programa não veja com bons olhos a comparação com qualquer outro reality show, consta do contrato a ser firmado entre as partes que a atuação dos futuros migrantes seja filmada durante todo o tempo. Entre abril e agosto de 2013, duzentas mil pessoas em todo o mundo se inscreveram para participar do Mars one.

Desse modo, enquanto traçamos novos planos de colonização, desta vez do espaço, o problema da distribuição de terras segue irresoluto aqui na Terra. Dos paradoxos com que convivemos hoje, no conjunto das sociedades que habitam a superfície do planeta, este é apenas um singelo exemplo. Por entre guerras, ascensão de ondas neofascistas e enormes fossos de desigualdade, jamais nos impusemos como necessário que primeiro resolvêssemos a questão da mera subsistência, ligada à distribuição de terra, água e alimento, a fim de somente depois podermos partir para tentar habitar outras paragens.

No Brasil, o direito a terra é previsto na constituição, mas nenhum governo foi capaz de resolver o problema das concentrações de enormes extensões, em grande parte improdutivas, nas mãos de algumas poucas famílias proprietárias. Povos indígenas, quilombolas e comunidades inteiras de trabalhadores rurais sem terra seguem na luta por um lugar onde plantar e colher. Em meados de 2017 já se registra um número recorde de assassinatos em conflitos por terra, com 37 mortes entre janeiro e maio, segundo a Comissão Pastoral da Terra.**

Olhando-se por esse ângulo, programas como o Mars one, diferentemente do que pode parecer, não são um passo natural e consequente no caminho do desenvolvimento científico e tecnológico, apesar de anunciarem que já é possível inclusive estender o raio de vida do humano para além do nosso planeta. Pelo contrário, até: observando as atuais relações geopolíticas, com um máximo de cinismo poder-se-ia argumentar, pela ótica do capital, que é mesmo necessário que haja Áfricas (empobrecidas), para que possa haver os EUA (cada vez mais ricos). De igual modo e pela mesma lógica perversa, é preciso que se esgotem os recursos necessários à vida aqui, a fim de que se justifique o envio de um pequeno número de pessoas a outras partes do universo, ainda que sem qualquer certeza de sobrevivência e de uma ulterior proliferação da espécie.

Radicalizando-se enfim a lógica que rege os dois polos desse paradoxo, constituído por uma vasta base de miséria que gera um pico de opulência, podemos afirmar que, mesmo tendo desenvolvido tecnologias avançadas ao ponto de podermos habitar um outro planeta, a mentalidade segue presa ao paradigma da exploração.

A intenção que move os vultosos investimentos feitos no desenvolvimento das tecnologias voltadas para essa nova colonização parece ser antes provar que se pode sobreviver por mais um tempo, conseguindo, a qualquer custo, o acréscimo de um pequeno respiro. Em diferentes áreas do pensamento, foram séculos de produção e reprodução de discursos que propalavam um avanço para além da mera sobrevivência da espécie, para ao final se reduzirem, contraditoriamente, a um apoio prático à premência mínima da garantia de sobrevida para um pequeno grupo de privilegiados do capital, contra uma maioria muda e esmagadora de deserdados da sorte.

Trata-se de uma postura que anula, de uma só vez, tanto a noção de humanidade como conjunto de diferentes povos que têm o direito de ser preservados (embora vivamos num contexto em que falar em direitos soe quase cândido), quanto a concepção de vida como bem supremo a ser protegido. De qualquer ponto de vista que se tome uma proposição como essa, de degradação do planeta e povoação sem futuro certo de uma outra estância, ela nos parece mais que perigosa: obtusa, antiética e mesmo psicopata.

Caminhando portanto a passos rápidos contra o sentido ainda vigente, embora aparentemente moribundo, de humanidade, em sua relação com a ideia de felicidade coletiva, o que se mostra é antes um novo, mesquinho e redutor empreendimento explorador, muito ao modo das antigas colonizações de descoberta do Novo Mundo, ou seja, feitas para poucos, que usarão, eliminarão ou abandonarão a todos os demais, só que agora no nível espacial.

Pode-se afirmar que, fora do ponto de vista da predação e do lucro, centrais para o capital, não há qualquer fundamento de maior escopo humanitário regendo aqui. Olhando desse ângulo, resistir durante tanto tempo tem sido mesmo um lance de sorte!

São reflexões provocadas pelo conto “Terra à vista”***, do livro Cantos profanos, de Evando Nascimento, texto declaradamente inspirado no projeto holandês de colonização de Marte, tanto quanto no filme Gravidade****, de 2013, dirigido por Alfonso Cuarón*****.

O conto de Nascimento é autodeclarado relatório, “o relatório mais isento possível”, escrito às vésperas do ano 2150 pelo provável último representante da espécie humana na órbita de Marte:

“Sou o derradeiro sobrevivente deste módulo enviado para cá em 2080 e pertenço à segunda geração de filhos de migrantes. Formávamos até recentemente a mais importante das quinze colônias implantadas em solo marciano, numa colaboração internacional. ‘Internacional’ é modo ultrapassado de dizer, vício de linguagem que herdei dos bisavós, como consignado nos livros de História. Segundo consta nos atuais informes, não há mais nações, apenas conglomerados que tentam administrar os recursos finais do planeta. Escrevo essas coisas para o fato de, eventualmente, um navegante intergaláticoum dia se deparar com as ruínas do que fomos. Perdemos toda a identidade restante, o canibalismo grassa faz décadas entre os descendentes, numa guerra sem fim.” (NASCIMENTO, p. 51-52)******.

Com base nos relatos do narrador, sabemos que, após diversas tentativas bem sucedidas de recriar artificialmente, em laboratório, a vida botânica e animal na Terra, uma bactéria teria destruído todos os resultados dessas experiências, e, junto, teria dizimado também dois décimos da humanidade, o que foi considerado uma vantagem, dadas as novas dificuldades de nutrição da população restante. Teria sido aí, ainda segundo as suas informações, que alguns blocos geopolíticos resolveram desenterrar os projetos de colonização do planeta vermelho.

A narrativa se passa após uma Terceira Guerra Mundial, que teria varrido do mapa o Oriente Médio, por meio de bombardeios nucleares, e “apaziguado” enfim as Coreias. O gelo dos polos já teria derretido, passando eles a serem “considerados zonas francas, dominadas pela máfia global, por assim dizer terra de ninguém.” (p. 53)

Por entre reflexões curiosamente pouco nostálgicas para os parâmetros atuais, sobre aspectos da História, sobre Deus, a finitude e a infinitude, esse remanescente, denominado apenas “Eu”, tem acesso a informações vindas da Terra, como o desencadeamento de uma

“Quarta Guerra, em razão da escassez de recursos e da fome generalizada. Os governos dos agrupamentos geopolíticos (…) denominados de UNOs, perderam o controle para movimentos anárquicos, que se apossaram das novíssimas máquinas de guerra. Como sempre, o mais potente triunfará, malgrado todos os outros povos” (p. 55).

Numa boa mostra do que seria um desenrolar do modo como já agimos hoje, esse “Eu”, ainda que ciente da existência de todo um conhecimento acumulado, reconhece, referindo-se à Terra: “Temos acesso a todos os saberes provenientes de lá, apesar de utilizarmos muito pouco. Nunca nos deram o direito a pesquisa própria, somos antes cobaias em situações extremas” (p. 55). A situação é limítrofe e, tudo indica, sem saída. Não há contato com outro representante da espécie: afora “o invisível rival” que o “Eu” criou “para não endoidecer de vez” (p. 55).

Isolado, imóvel e sem poder tocar a terra ou um outro corpo, ele afirma: “Os familiares me visitam com frequência, dão conselhos e se esfumam no ar.” (p. 55). Mesmo assim, em meio à “sólida solidão” em que se encontra, o último homem conta com a “sorte” de haver ao menos um outro humano “no módulo dez”: “O painel só registra dois sinais residuais de vida, o meu é um deles.” (p. 55)

Resume por fim:

“Esse é o drama, das quinze colônias marcianas, apenas duas resistem, numa me encontro sozinho, o derradeiro companheiro sucumbiu há duas semanas, prefiro não informar como. Sei que há baterias e víveres escondidos em algum túnel entre o segundo e o terceiro módulo, mas ainda não encontrei o roteiro. Pode ser que meu único adversário, o do décimo módulo, lá chegue antes de mim, preciso continuar, não posso continuar – farei tudo para conquistar as reservas, onde quer que estejam, tenho um corpo de vantagem” (p. 56).

O corpo, nosso tão amado e idolatrado corpo, cintila então como um mero sinal residual, quiçá o último vestígio do que denominamos hoje a “condição humana”. Ele perde também o seu atributo primeiro de sentir, desejar tocar e ser tocado. De depositário vivo de sentidos, afetos e sensibilidade, tudo isso que a ele se aderiu ao longo da história, o corpo se reduz a uma “vantagem”. O ensejo ao embate, presente tanto na criação de um inimigo imaginário quanto na ideia de vencê-lo na luta pela sobrevivência, avulta como traço último, definitivo e marcante do humano. Não importa onde esteja – se em condições ditas normais, aqui na Terra, ou extremas, na órbita de um outro planeta –, assim que vislumbra a existência de um outro vivente, o primeiro pensamento do “Eu” é derrotá-lo, contando para isso com “um corpo de vantagem”. Em tal condição, o corpo não é mais a âncora de um complexo de sentimentos humanos que foi um dia; é antes o instrumento que resta para marcar um território. Ainda que isso venha a significar uma solidão ainda maior, o “Eu” lutará contra o outro pelas reservas de víveres, não pensando, por exemplo, em dividi-las com ele. A luta pelo domínio sobre o outro replica, em nível individual e no solo de Marte, o que ocorre, coletivamente, aqui na Terra, condenando-nos, ainda uma vez, ao niilismo.

O homem, que no antigo postulado de Protágoras era “a medida de todas as coisas”, não aparece mais na condição de modelo para tudo o que possa criar a partir e em prol do humano. Ao contrário, a essa altura todas as “coisas” já foram inventadas, usadas e descartadas. O último homem, solitário, migra agora para uma vida sem quaisquer dos “entraves” que o ligavam à Terra.

Em nome do domínio sobre o outro, a humanidade abdica, conscientemente ou não, a tudo o que auxiliava no construto da sua condição, e que passa, logicamente, pela alteridade. O corpo como local dos sentidos é neutralizado em nome da luta renhida que, ao final, significará a própria eliminação da espécie. Aliás, que seria um humano sozinho, isolado, livre da alteridade? Em condições como essa que o conto apresenta, seria ele ainda um humano?

Numa análise comparativa entre os movimentos de colonização de fins da Idade Média e os atuais, o professor Guillermo Giucci afirma que por um lado é possível estabelecer a comparação, embora por outro se trate de eventos totalmente diferentes:

“O submetimento da alteridade pelas armas e pelo verbo divino, (…) as figuras do cativo indígena, do náufrago abandonado e do índio intérprete, nada disso existe na conquista moderna, a do sistema solar. (…) Mas hoje nos remetemos a uma forma de subjugação que se distancia progressivamente do marco de referência humano, pois persegue a eliminação do corpo e do som. É a conquista clean, informatizada, robotizada”(GIUCCI, p. 7). “Por trás da agonia dos antigos valores, (…) perfila-se – de forma cada vez mais perturbadora – a gênese de uma transformação profunda e difícil de captar: o cancelamento da intimidade do ser humano com o ambiente natural ou artificial que o cerca. (…) o projeto solar se abre para o infinito (…) no interior de um vazio onde as noções de fronteira e de corporalidade parecem diluir-se e carecem de substância.”(GIUCCI, p. 9). “A etapa que se inicia para a humanidade – a etapa interplanetária –, que o viajante norte-americano do espaço Armstrong confunde com o progresso da ciência e da tecnologia, pode não ser agradável nem justa, mas irrompe no cenário da história sem se preocupar com os matizes e possuída de uma vontade férrea de exterminar, não só Deus e o passado, como o próprio planeta Terra.” (GIUCCI, p. 14)

Assim como nos livros de ficção anteriores, também em Cantos profanos a escrita de Evando Nascimento encena questões que interessam a quem pensa sobre, por exemplo: por que é que buscamos saber o que viemos fazer na Terra? Qual a razão de conservamos ainda hoje a ideia utópica da existência de Deus? Haverá um próximo estágio para a condição humana, dentro ou fora do planeta? Num futuro não muito distante, será possível ao homem adiar infinitamente a morte? Qual é o peso de cada afeto? O que seria hoje o que se chama a humanidade?

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução Roberto Raposo. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.

COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. CPT Amazonas lançará relatório Conflitos no Campo Brasil 2016Disponível em: https://www.cptnacional.org.br/publicacoes/noticias/cpt/3820-cpt-amazonas-lancara-relatorio-conflitos-no-campo-brasil-2016. Acesso em: 17 jul. 2017.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1982.

GIUCCI, Guillermo. Velhos e novos mundos: da conquista da América ao domínio do espaço cósmico. Tradução Gloria Rodríguez. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 4, n. 7, 1991, p. 3-18.

NASCIMENTO, Evando. Cantos profanos. São Paulo: Biblioteca azul, 2014.

* DELMASCHIO, A. P. “Terra à vista”: a condição humana nos Cantos profanos, de Evando Nascimento. XV Congresso Internacional da Abralic: Textualidades ContemporâneasV. 2 (anais eletrônicos). João Cézar de Castro Rocha et al (org.). Rio de Janeiro, 2017. p. 2079-2086. Disponível em: http://www.abralic.org.br/anais/arquivos/2017_1522188375.pdf . Acesso em 05/05/2019.

** Fonte: COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. CPT Amazonas lançará relatório Conflitos no Campo Brasil 2016Disponível em: https://www.cptnacional.org.br/publicacoes/noticias/cpt/3820-cpt-amazonas-lancara-relatorio-conflitos-no-campo-brasil-2016. Acesso em: 17 jul. 2017.

*** No título “Terra à vista”, a expressão “à vista” insinua a atuação, no enredo, do poder do capital, afinal maior responsável pela destruição das condições de vida no planeta Terra. Para além de designar simplesmente a terra firme avistada ao longe, augúrio dos navegadores marítimos, a expressão se refere agora à Terra (com maiúscula) abatida, explorada e liquidada “à vista”, como no comércio. O nome do conto revela ainda, de modo sutil, uma relação entre a colonização antiga e a futura e, ao mesmo tempo, a diferença entre elas, como se verá adiante.

**** O tom discretamente cômico da narrativa de Nascimento se origina, em parte, do absurdo da situação a que realmente chegamos; em outra, do aspecto paródico quanto à “ficção científica”, gênero ao qual se filia o filme Gravidade, cujo título, aliás, aponta para uma curiosa ambivalência, indicando tanto a força que nos prende à Terra, quanto a gravidade da situação em que nos encontramos hoje.

***** O conto “Terra à vista” pode ser comparado ao que tradicionalmente se chamava ficção científica; com a diferença importante, porém, de que é muito menor, aqui, a preocupação com a verossimilhança, geralmente presente no detalhamento técnico dos objetos e eventos, na ficção científica. Além disso, a ficção científica tradicional projetava eventos que viriam a ser realizados num futuro distante, enquanto que a ficção de Nascimento se constrói dentro de um tempo que devorou já essas distâncias temporais: ali o passado é anulado e o futuro parece mais próximo do que se imaginava. “Terra à vista” provoca assim uma rasura na significação do adjetivo “científica”, até há pouco simplesmente recuperável, no contexto mais geral, e em especial quando se seguia ao termo ficção. Questiona portanto certas facetas da ciência e, junto com elas, o conceito de ficção científica.

****** A partir desta, todas as citações sem identificação de obra foram retiradas de: NASCIMENTO, Evando. Cantos profanos. São Paulo: Biblioteca azul, 2014.

A VOZ SINGULAR E A LITERATURA PENSANTE DE EVANDO NASCIMENTO EM “CANTOS PROFANOS”
Autor consolida sua dicção única no cenário da literatura brasileira contemporânea

POR JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA*

O GLOBO, PROSA & VERSO, 27/12/2014 6:40

RIO – Acompanhar a literatura brasileira contemporânea com olhos livres permite identificar o surgimento de projetos inovadores e de grande interesse. É o caso de Evando Nascimento: “Cantos profanos” confirma a importância e singularidade de sua dicção. No fundo, a expressão usada por ele para caracterizar a obra de Clarice Lispector — literatura pensante — é a mais perfeita tradução de sua escrita. Contudo, aqui, todo cuidado é pouco. Não se trata de supor um discurso filosofante, às voltas com um conteúdo pretensamente elevado ou hermético.

Muito pelo contrário, Evando torna a literatura pensante um exercício específico de imaginação, desdobrado num convite para que o leitor crie seus mundos. Ressalto, então, a pluralidade do gesto, que inclui engenhosas provocações à filosofia, o prazer de narrar situações surpreendentes, além de uma apropriação constante de elementos tanto da tradição quanto da cultura pop.

A epígrafe do livro, aliás, cifra essa potência múltipla, a marca-d’água da literatura de Evando: “Decerto caberia sempre aos leitores inventarem seu próprio livro (…). Em contrapartida, caberia ao livro, com alguma sorte, inventar seus leitores (…).” A ficção se encontraria entre os dois movimentos de invenção.

De fato, a estrutura do livro arma um jogo de xadrez. Sobretudo, as peças brancas pertencem ao leitor, pois, numa inversão deliberada, a ele cabe o lance inicial nesse tríptico de palavras.

A primeira parte se denomina “Cantos” e alinhava uma série de situações-limite, nas quais uma história canônica ou um evento cotidiano são transformados por uma escrita que articula perguntas sem resposta.

“Babel revisitada” é uma obra-prima. Eis sua premissa: a inusitada tarefa — “Inventaram então de edificar a Torre infinita” — dispensa o desejo de rivalizar com “Deus”, evocando antes uma estrutura puramente humana, como, por exemplo, a malograda torre espiralada de Vladimir Tatlin. Babel volta a ruir, não por punição divina, mas por erro de cálculo de origem malthusiana: dada a multiplicação da espécie, “a parte da torre-mastro já construída não suportou o peso de tanto povo”.

“Altamente confidencial” é uma pequena joia. Um carteiro com nome de anjo, Gabriel Arcanjo, afinal, trata-se literalmente de um mensageiro, redige um e-mail, descrevendo o paradoxo de sua vocação constrangida: “Leio o que me cai nas mãos, livros, revistas, jornais, panfletos. Tudo menos o conteúdo dos envelopes que entrego, só o sobrescrito. Por isso sou leitor frustrado”. E, como recorre ao correio eletrônico, muito em breve um carteiro desempregado.

A segunda parte, “Profanações”, reúne um conjunto de transgressões que vira lugares-comuns pelo avesso. “Demo” é um monólogo extraordinário — atenção, encenadores: trata-se de texto pronto para o palco! —, no qual o “Obscuro” esclarece, e o faz com impecável lógica, que “o Mal é, portanto, o verdadeiro Bem”. O leitor termina o conto convencido. Ainda mais: desejoso de habitar essa casa muito engraçada, cuja boa nova encerra o texto: “Proclamo o Novo Evangelho, capítulo nulo, versículo zero”. “Demo” ombreia, em inventividade e linguagem, com seu precursor, “A igreja do diabo”, de Machado de Assis.

“Noturno (pequena fantasia musical)” ata as pontas da ficção e da ensaística de Evando. O conto tematiza um encontro único: “Faz meia hora que nos miramos, quase indiferentes. Que saberá de mim, que saberei jamais dela?” No longo intervalo, dois olhares se cruzam: em posição de igualdade, ave e homem se medem. Melhor: iguais porque intuem que a diferença presente remete a circunstância própria. Como Guimarães Rosa, Evando reescreve Protágoras: o vivente é a medida de todas as coisas; logo, também dos homens. A ficção de Evando inaugura uma ponte com o perspectivismo, tal como teorizado por Eduardo Viveiros de Castro.

O autor de “Retrato desnatural” propôs uma hipótese capaz de renovar a antropofagia oswaldiana: em lugar de devorar o outro, por que não comer junto com ele? Ou, pelo menos, adotar a dieta prescrita em “Muito prazer,”; autêntica abertura ao infinito precisamente porque o círculo se fecha: “tal é a lei do universo, engolir e ser engolido, em prol da comilança absoluta”.

A última seção, “Os vestígios”, apresenta uma série de “estudos” — entenda-se o termo no sentido empregado nas artes plásticas. O terceiro, “Reflexo (reverso)”, sintetiza com engenho o perspectivismo da ficção de Evando, isto é, o desejo de escrever para deixar de ser Evando, inventando-se outros tantos: “Cansei de dizer Espelho meu, agora serei para todo o sempre espelho seu”.

“Cantos profanos”, portanto, é um convite: espero que o leitor siga a dica, descobrindo-se inumeravelmente trezentos-e-cinquenta. É bem isso: o autor de “Cantos do mundo” afirma sua força através de uma prosa que se desdobra em desconcertantes experiências de pensamento, formuladas numa linguagem cirúrgica, cuja fatura distingue seu autor no universo da literatura brasileira contemporânea.

*João Cezar de Castro Rocha é professor de literatura da Uerj e autor de “Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo”

“Cantos Profanos”

 

Evando Nascimento – Selo Biblioteca Azul (Ed. Globo) 152 págs.

http://oglobo.globo.com/cultura/livros/a-voz-singular-a-literatura-pensante-de-evando-nascimento-em-cantos-profanos-14911305#ixzz3N5qwrrfe

A FICÇÃO DE EVANDO NASCIMENTO – JORNAL RASCUNHO

POR JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA*

Ilustração: Carolina Vigna

Desnaturalizar

Acompanhar a literatura brasileira contemporânea com olhos livres permite identificar o surgimento de projetos inovadores e de grande interesse.

É o caso de Evando Nascimento, que terminou de publicar seu terceiro livro como ficcionista.

Neste artigo, por isso mesmo, proponho uma leitura de sua obra em progresso, destacando a importância de Cantos profanos, cujos contos e textos levam adiante experiências e exercícios dos dois primeiros livros.

Ensaísta reconhecido, um dos mais criativos intérpretes da obra de Jacques Derrida, Evando lançou em 2008 Retrato desnatural (diários — 2004 a 2007). Ficção.

O título, em si mesmo, sugere o princípio motor de sua escrita.

Vejamos.

A simples ideia de Retrato desnatural promete um curto-circuito.

Ora, num sentido prosaico, o retrato deveria manter com o retratado uma relação, por assim dizer, própria — muito embora tal propriedade possa recorrer à desproporção e à deformação metódicas, como ocorre nas telas de Francis Bacon. Aliás, o diálogo com as artes plásticas é um elemento-chave na literatura de Evando. No fundo, ele radicaliza o procedimento de Bacon, pois, em boa medida, a escrita de Retrato desnatural estrategicamente descola o gênero retrato do compromisso com qualquer forma de verossimilhança. Pelo avesso, o retrato mais fiel seria antes um mosaico de máscaras, compondo:

poéticas do quase
cacos de idiomas
pútridos quasares
na cripta angelical

pedaços da vida
retratos da arte[1]

A arte, portanto, é o território de uma desnaturalização em série: da linguagem, do mundo, do sujeito. Tal concepção subjaz à literatura de Evando, cujo eixo articulador desenvolve uma “estética da emulação”, como ele definiu em entrevista recente à revista Fórum de Literatura.

Explico.

Melhor: transcrevo fragmentos do livro:

promissória: em seus primeiros exercícios de emulação, picasso copiava no caderno-estúdio escolar a assinatura dos caricaturistas que admirava; outros acusariam falsificação. assim, contam, fez fortuna.
(…)

o óbvio (o ovo): sem exceção, todos os livros verdadeiramente lidos foram reescritos — do centro às margens.
partida: na literatura, vida, ficção ou ensaio, só conta o reescritor. escrever é reescrever desmesuradamente. ou ainda, noutro plano, transcrever, escrita sobre escrita, o reescritor é também transcritor.
(146)

É isso.

Tudo dito.

Assim como o retrato não implica aderência ao rosto porém adesão ao traço, o autor se encontra ao se descobrir outros na apropriação sistemática da tradição. Desse modo, Evando anuncia o que provavelmente será a marca-d’água de sua escrita. Isto é, mais do que o desenho preciso de uma prosa que pensa ou a retomada decidida da prosa poética — embora ambas as pulsões estejam presentes no projeto de Evando —, o autor de Cantos do mundo parece propor um perspectivismo antropológico radical, cujo sujeito se afirma precisamente por meio de um esforço bem refletido de dessubjetivação.

(Afinal, para um autor-leitor, o eu é sempre muito pouco — claro, é um outro. Ou: muitos outros.)

Cantar o mundo

O segundo livro do ficcionista, Cantos do mundo, saiu em 2012. Nele, Evando abraçou o exercício narrativo inerente ao conto. O escritor ampliou as cores de sua paleta, acrescentando à frase epigramática e à dicção ensaística de Retrato desnatural — forças presentes também nos poemas da primeira seção do livro — o domínio do relato curto.

Contudo, sem abdicar da vocação pensante de sua prosa.

Um conto em particular permite vislumbrar o elo entre os dois primeiros títulos — O dia em que Walter Benjamin daria aulas na USP.

Como se sabe, no início da década de 1930, criou-se uma comissão responsável por convidar sábios e especialistas europeus para formar o corpo docente da Universidade de São Paulo, criada em 1934. A história é muito bem conhecida e somente a menciono porque o pesquisador alemão Karlheinz Barck descobriu uma surpreendente correspondência entre Erich Auerbach e Walter Benjamin, na qual o autor de Mimesis revelava que havia pensado em Benjamin para uma possível temporada brasileira como professor de literatura alemã na USP.

Evando imagina uma engenhosa alternativa contrafactual e reescreve o episódio. A oferta bem poderia ter sido irrecusável. Afinal, o cargo de professor na Universidade de São Paulo tornaria irrelevante o insucesso acadêmico de A origem do drama barroco alemão — texto reprovado na austera academia alemã. No êxodo provocado pelas perseguições nazistas, professores de grande prestígio viajavam invariavelmente para os Estados Unidos; por exemplo, foi o caso de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, amigos de Benjamin. No entanto, intelectuais que não possuíam credenciais similares aventuravam-se na América do Sul.

Pelo menos é o que, na ficção do brasileiro, Benjamin confidenciou a Auerbach:

Caríssimo Erich,

Eis-me de malas prontas para viajar ao Brasil. Aquela possibilidade de lecionar na Universidade de São Paulo, aventada em 1935, finalmente se concretizou num convite oficial.
(…)

O fato de ser uma Universidade muito jovem traz grande alento, assim não implicarão por não ter a Tese de Livre-Docência — quem sabe não refaço um pouco o trabalho, encomendo uma tradução e obtenho o título lá mesmo? Sei que a ansiedade está me deixando um tanto afobado. Vamos deixar as coisas se desenrolarem, sem inútil antecipação. Contudo, se um dia dominar o idioma, não sei se será possível filosofar em português, nunca ouvi falar em filósofo brasileiro. Decerto haverá. Talvez.[2]

Por que não?

Vilém Flusser soube apreciar a força da filosofia de Vicente Ferreira da Silva e a originalidade da literatura de Guimarães Rosa.

Roger Bastide descobriu a paisagem na prosa machadiana e, como poucos, entendeu a arte e o cotidiano brasileiros.

Possibilidade fascinante: cruzando a Ipiranga e a Avenida São João, Walter Benjamin intuiria a tradução mais completa de sua nova circunstância devorando Macunaíma e o Manifesto antropófago.

Os cantos de Evando suscitam tais imagens — autênticas experiências de pensamento.

Um tríptico?

Venho, agora, ao título recém-lançado.

Cantos profanos confirma a importância e a singularidade da dicção de Evando. No fundo, a expressão usada por ele para definir a obra de Clarice Lispector — literatura pensante — caracteriza muito bem seu projeto.

Porém, aqui, todo cuidado é pouco.

Não se trata de supor um discurso filosofante, às voltas com um conteúdo pretensamente elevado ou hermético.

Muito pelo contrário, Evando torna a literatura pensante um exercício específico de imaginação, desdobrado num convite para que o leitor crie seus mundos. Ressalto, então, a pluralidade do gesto, que inclui engenhosas provocações à filosofia, o prazer de narrar situações surpreendentes do dia a dia, além de uma apropriação constante e irreverente de elementos tanto da tradição quanto da cultura pop.

(Isso mesmo que você imaginou: os três títulos recordam um tríptico, cujo painel central estamparia Cantos profanos: forma plástica de cruzamento dos exercícios e experiências de Retrato desnatural e Cantos do mundo.)

A epígrafe do livro cifra essa potência:

Decerto caberia sempre aos leitores inventarem seu próprio livro (…).
Em contrapartida, caberia ao livro, com alguma sorte, inventar seus leitores (…).
A ficção se encontraria entre os dois movimentos de invenção.

De fato, a estrutura do livro arma um jogo de xadrez. Sobretudo, as peças brancas pertencem ao leitor, pois, numa inversão deliberada, a ele cabe o lance inicial nesse tríptico de palavras.

A primeira parte se denomina Cantos e alinhava uma série de situações-limite, nas quais uma história canônica ou um evento cotidiano são transformados por uma escrita que articula perguntas sem resposta.

Babel revisitada é uma obra-prima. Eis sua premissa: a inusitada tarefa — “Inventaram então de edificar a Torre infinita”[3] — dispensa o desejo de rivalizar com “Deus”, evocando antes uma estrutura puramente humana, como, por exemplo, a malograda torre espiralada de Vladimir Tatlin. Babel volta a ruir, não por punição divina, mas por erro de cálculo de origem malthusiana: dada a multiplicação da espécie, “a parte da torre-mastro já construída não suportou o peso e tanto povo” (22).

Altamente confidencial é uma pequena joia. Um carteiro com nome de anjo, Gabriel Arcanjo, afinal, trata-se literalmente de um mensageiro, redige um e-mail, descrevendo o paradoxo de sua vocação constrangida:

Leio o que me cai nas mãos, livros, revistas, jornais, panfletos. Tudo menos o conteúdo dos envelopes que entrego, só o sobrescrito. Por isso sou leitor frustrado (45).

(E, como recorre ao correio eletrônico, muito em breve um carteiro desempregado.)

A segunda parte, Profanações, reúne um conjunto de transgressões que vira lugares-comuns pelo avesso.

Demo é um monólogo extraordinário — atenção, encenadores: trata-se de texto pronto para o palco! —, no qual o “Obscuro” esclarece, e o faz com impecável lógica, que “o Mal é, portanto, o verdadeiro Bem” (66). O leitor termina o conto devidamente convencido. Ainda mais: desejoso de habitar essa casa intertextual muito engraçada, cuja boa nova encerra o texto: “Proclamo o Novo Evangelho, capítulo nulo, versículo zero” (67). Demo ombreia, em inventividade e linguagem, com seu precursor, A igreja do diabo, de Machado de Assis.

Noturno (pequena fantasia musical) ata as pontas da ficção e da ensaística de Evando. O conto tematiza um encontro único: “Faz meia hora que nos miramos, quase indiferentes. Que saberá de mim, que saberei jamais dela?” (81). No longo intervalo, dois olhares se cruzam: em posição de igualdade, ave e homem se medem. Melhor: iguais porque intuem que a diferença presente remete a circunstância originária comum. Evando reescreve Protágoras: o vivente é a medida de todas as coisas; logo, também dos homens. A ficção de Evando inaugura uma ponte com o perspectivismo antropológico, tal como teorizado por Eduardo Viveiros de Castro.

O autor de Retrato desnatural propôs uma hipótese capaz de renovar a antropofagia oswaldiana: em lugar de devorar o outro, por que não comer junto com ele? Ou, pelo menos, adotar a dieta prescrita em Muito prazer; autêntica passagem ao infinito precisamente porque o círculo se fecha enquanto as bocas se abrem: “tal é a lei do universo, engolir e ser engolido, em prol da comilança absoluta” (80).

A última seção, Os vestígios, apresenta uma série de “estudos” — entenda-se o termo no sentido empregado nas artes plásticas; além disso, tal seção ecoa e refina a noção de Restos, última parte de Retrato desnatural. O terceiro vestígio, Reflexo (reverso), sintetiza com engenho o perspectivismo de sua ficção — o desejo de escrever para deixar de ser Evando, inventando-se outros tantos: “Cansei de dizer Espelho meu, agora serei para todo o sempre espelho seu” (110).

Cantos profanos é um convite: espero que o leitor siga a dica, descobrindo-se inumeravelmente trezentos-e-cinquenta.

Evando Nascimento afirma sua força através de uma prosa que se desdobra em instigantes experiências de pensamento e desconcertantes exercícios de dessubjetivação, formulados numa linguagem cirúrgica, cuja fatura distingue seu autor no universo da literatura brasileira contemporânea.

_____________________
[1] Evando Nascimento. Retrato desnatural (diários – 2004 a 2007). Ficção. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 55, grifos do autor. Nas próximas citações, mencionarei apenas o número da página.
[2] Evando Nascimento. “O dia em que Walter Benjamin daria aulas na USP”. Cantos do mundo. (Contos). Rio de Janeiro: Record, 2011, p. 155 e 162.
[3] Evando Nascimento. “Babel revisitada”. Cantos profanos. São Paulo: Editora Globo, 2014, p. 21. Nas próximas citações, mencionarei apenas o número da página.

*João Cezar de Castro Rocha é professor de literatura da Uerj e autor de “Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo”.

http://rascunho.gazetadopovo.com.br/a-ficcao-de-evando-nascimento/

26/09/2014 às 05h00

A “FICÇÃO VITAL” DE EVANDO NASCIMENTO

POR MARIANA IANELLI | PARA O JORNAL VALOR

Nascimento: em “Cantos Profanos”, seus jogos de pensamento, à luz da razão poética, produzem fogo na síntese de um “real surreal”

Anos atrás, George Steiner propôs para a literatura do século XXI um desafio: a possibilidade de um ateísmo capaz de substituir “o vento morno que sopra sobre a superfície de nosso pós-modernismo”, vento morno que Steiner deduz de um “agnosticismo inócuo”. Inspirado nessa possibilidade, o crítico emenda à sua hipótese uma provocação: supondo que um ateísmo se fortaleça como pensamento e forma articulada entre escritores e artistas, “suas obras conseguirão rivalizar com as dimensões, os transfiguradores poderes de persuasão que já conhecemos?” Eis um desafio à altura de “Cantos Profanos”, novo livro do baiano Evando Nascimento.

Familiar aos aspectos hoje recorrentes na literatura, como o hibridismo de gêneros, a heteronímia e, virtude do século, o sal da ironia, Evando Nascimento consegue mais do que uma esplêndida miscelânea contemporânea em seus textos. Como se faz com o sol no foco de uma lupa, seus jogos de pensamento, à luz da razão poética, produzem fogo na síntese de um “real surreal”. Esse fogo, que vem de um sol negro, em “Cantos Profanos” reflete seu esplendor de ébano nos quatro cantos do mundo.

Um Édipo sem culpa expõe sua versão lúbrica dos fatos; Gabriel Arcanjo, um carteiro da ECT com poder de conectar ou sabotar destinos, presta seu depoimento sigiloso num e-mail; o Demônio em ficção se apresenta, réu confesso, e por escrito se desmistifica, ele próprio uma fábula terrena, “fruto da imaginação humana numa caixinha de Pandora”; um homem, às vésperas do ano 2150, derradeiro sobrevivente de uma das colônias de Marte, envia sua mensagem na garrafa, para um eventual navegante intergaláctico, com notícias de um planeta Terra pós-apocalipse, sem Juízo Final. Nessa fábula do futuro, já à altura da Quarta Guerra Mundial, o Oriente Médio praticamente desapareceu e dos Estados Unidos só restaram poucas ruínas. Em todas essas ficções do mundo, Deus aparece como a maior utopia inventada pelo homem.

O profano aí consiste num colapso da distinção entre bem e mal, fazendo-os coincidir como faces espelhadas. É um jogo de pensamento que fabula neutralizar sinais contrários, e o zero absurdo resultante desse jogo corresponde a uma “ficção vital”, essa que a todo momento confunde o falso e o verdadeiro, o sacro e o não sacro, vida e nada. Como a “verdade subterrânea” numa falsificação de um quadro de Rembrandt (“Atestados”), o autor revela a chave de seu jogo jogando: “Desejaria apreender a loucura da razão e depreender a razão da loucura”. Ou ainda: “Na insânia, os antípodas se encontram”. Daí a quimera desses cantos profanos, cujas partes verdadeiras, feitas de “camadas insuspeitas do real”, entranhadas no mundo, compõem um todo fantástico. Exatamente a “razão da loucura” dessa quimera é sua verossimilhança.

Vem dessa lógica poética a vocação de fragmento de muitas passagens do livro: “A quem me dirijo, não sei, talvez ao Nada, só que por enquanto essa entidade vacante para mim tem a cara da Vida”; “Toda mãe não é berçário de luzes que ainda hão de brilhar? Origâmico multiverso”; “Trombeteiam os apocalípticos, em algazarra, que o fim finalmente começou. Ou acabou”; “O silêncio talvez não passe de um ruído de fundo, quando tudo o mais espantosamente se cala”. Como esses fragmentos destacáveis, outros há, incorporados, como vozes confundidas, numa babel que não é apenas assunto senão também substância do texto, a exemplo dos versos finais do poema “Amor à Primeira Vista”, de Wislawa Szymborska, camuflados no corpo de uma carta ficcional (“Elos”).

Evando Nascimento cumpre, assim, com novos cantos (lembrando que em 2011 o autor publicou “Cantos do Mundo”), o próprio aforismo de que “importa não mais a Grande Obra, mas as obras intensas, capazes de levar assistência a outras esferas, com os pés no chão, como igualmente por vezes acontece num transcendental cinema”. Num consórcio de intensidade e geometria, vê-se que o poeta, denominador comum entre jogo e fogo, mantém sempre viva a força persuasiva de suas fabulações.

“Cantos Profanos”

Evando Nascimento – Biblioteca Azul – 152 págs.

Leia mais em:

http://www.valor.com.br/cultura/3710786/ficcao-vital-de-evando-nascimento#ixzz3FaYsvIkZ

O MAL QUE HABITA O MUNDO – Jornal Estado de Minas – Pensar

Livro de contos de Evando Nascimento, Cantos profanos dá sequência ao projeto literário do ensaísta especializado em literatura e filosofia

POR JOÃO PAULO DA CUNHA

Publicação: 02/08/2014 00:13

Joshua Lott/Reuters

Evando Nascimento faz parte de um grupo reduzido de ensaístas e estudiosos de literatura que também exercita a ficção de forma destacada. O autor de estudo sobre a obra de Clarice Lispector (Clarice Lispector: uma literatura pensante) é também um dos mais reconhecidos especialistas brasileiros na obra do pensador Jacques Derrida, de quem foi aluno em Paris. O escritor de ficção, por seu turno, é ao mesmo tempo um desdobramento do acadêmico e seu antípoda.

Assim como em Silviano Santiago, a obra ficcional de Evando Nascimento deixa entrever a erudição do professor, mas em nenhum momento é seu ponto de partida ou motivo de criação – nem mesmo para negá-lo. O escritor, íntegro, pede para ser avaliado por sua obra, não pela formação; pela criação, não pela teoria.

E o novo livro de ficção do autor, Cantos profanos (que se segue a Cantos do mundo e Retrato desnatural) dá ainda mais consistência ao projeto autoral de Evando. O escritor domina o conto com força estilística, sobretudo pela capacidade de contenção, que não perde em momento algum a força. Como um domador de raios, são sempre momentos intensos, captados numa prosa enxuta, mas capaz de se servir de todos os recursos da linguagem e de suas possíveis vozes. Cada conto, de certa forma, inaugura um modo narrativo próprio, adequado ao que está sendo apresentado.

O nome do livro é revelador. Todas as narrativas tangenciam motivos subterrâneos, extremos, violentos, excessivos, além das convenções. A realidade profanada ganha em cada história uma expressão quase limítrofe, alternando a primeira pessoa (mais presente), o documento (carta e confissão) e o narrador onisciente; por vezes em meio ao espanto, outras com assustadora naturalidade. O extraordinário em Evando Nascimento, contudo, parece sempre brotar de uma realidade que a tudo assiste de forma impassível. Mais que social ou político, como em Rubem Fonseca, por exemplo, o mal para o escritor não precisa de justificativa para invadir a vida dos personagens. Ele existe.

Há de tudo no cenário profano das histórias: suicídio, pedofilia, sexo, violência, vingança, humilhação. Dividido em três partes, as histórias de Cantos profanos parecem se distribuir em seus propósitos. Em primeiro lugar os cantos; seguidos das profanações; e sintetizados numa narrativa ao mesmo tempo delirante e sistemática, “Os vestígios”, que encerra o volume. Como muitas histórias carregam intertextos e diálogos eruditos habilmente despistados, o autor completa o livro com uma “Tábua gratulatória”, na qual identifica suas dívidas.

A narrativa em si pode passar por uma mera provocação para se aproximar de determinados temas ou formas de contar a história. Mas é no habilíssimo jogo de mesclar os dois universos – o que dizer e como dizer –, que os contos de Evando se tornam exemplares e, em alguns momentos, de impressionante acabamento. Além disso, sempre muito perto do assustador – que se revela natural algumas vezes –, o contista parece ir alargando sua compreensão da realidade por meio de exemplos que sintetizam certa disposição contemporânea para a angústia e ansiedade em compreender o mundo à volta. O mal-estar das profanações.

No limite No primeiro conto, “Tentação do santo”, o leitor se depara com a confissão de um estupro, em que a violência está expressa menos no comportamento hediondo que na linguagem que naturaliza o crime. Em “Nada como um dia”, uma intelectual vive a rotina de sua distinção autoconferida até ser atropelada pelo desejo e pelo sexo. O conto “Terra à vista” é um experimento em ficção científica que brota do filme Gravidade, no qual o narrador tenta fazer um relato isento da experiência de abandono e solidão que vive em Marte, no ano 2150.

Cada história de Evando traz uma situação-limite, que exige algum tipo de solução. Por vezes, é o desfecho forte como um soco, como em “O banquete”, que escorrega da complacência inicial para o brutalismo do arremate; outras, a pura entrega aos prazeres, mas sem o peso da libertinagem, quase como um destino que atravessa a vida de um taxista, que gosta de homens e mulheres, e emenda sua narrativa em parágrafos que se encaixam como blocos estanques e sem historicidade. Como passageiros que embarcam em sua história.

O sentido religioso também está presente, seja nos temas – como o pecado e a culpa – seja nas formas de expressão, por vezes fabulares, confessionais e em alguns momentos epifânicas (como em “Noturno”), com uso ainda de aforismos e fragmentos que emulam a literatura sapiencial. Não falta nem mesmo um depoimento em primeira pessoa do próprio diabo em “Demo”.

O texto que encerra o livro, “Os vestígios”, explicita a marca mais intelectual e erudita do autor, com constantes referências à arte e ao saber, que vão de Shakespeare e Van Gogh ao filme O som ao redor e aos irmãos Taviani. Mas cuidado: são muitas vezes pistas falsas.

Evando Nascimento marca sua posição na prosa de invenção atual. Assim como suas histórias procuram sempre extrair o extraordinário do ordinário, sua arte mergulha no mundo dos sentimentos para figurar algo que mereça um canto, ainda que profano. Afinal, é a matéria de que somos feitos.

Cantos profanos

• De Evando Nascimento
• Biblioteca Azul
• 152 páginas

http://divirta-se.uai.com.br/app/noticia/pensar/2014/08/02/noticia_pensar,157931/o-mal-que-habita-o-mundo.shtml

GUIA DA FOLHA DE S. PAULO

http://edicaodigital.folha.com.br/home.aspx?cod=JOJMOPIOCRQ0

Caio Liudvik:

EVANDO NASCIMENTO, CANTOS PROFANOS

Ex-aluno de Jacques Derrida, Nascimento exige dos leitores o que oferece a cada página: audácia de pensar fora da caixa. Sem hermetismos, o ensaísta conjuga, nestes contos, densidade filosófica e maestria narrativa na “desconstrução” irônica de velhas morais e metafísicas que, antes do niilismo, podiam esconder de si mesmo o homem, o fundo intratável do desejo, das misérias, da capacidade de fazer da Terra (à beira da catástrofe explorada num em conto futurista) o que as mitologias projetavam no inferno.

O antídoto para a devastação existencial que nos ameaça talvez esteja no aspecto libertador das “profanações” de que falam Walter Benjamin e Agamben, ou no elogio da “razão sensível” (possível alusão a Michel Maffesoli) que o próprio príncipe das trevas, aqui sem intermediários, como o homem no confessionário do conto de abertura, profere e sugere –em instante de generosidade paradoxal- ser a rota de saída do caos, em perturbador autorretrato diabólico.

AVALIAÇÃO ÓTIMO

http://unzuhause77.blogspot.com.br/2014/08/resenhas-para-folha-30082014.html

Diário do Rio

O MAPA DA CULTURA

Desafios cariocas

Calor, praias cheias e os relatos dos taxistas

ALVARO COSTA E SILVA

[…]

SEXO ORAL

Em seu segundo e excelente livro de contos, “Cantos Profanos” [Biblioteca Azul, 152 págs.], Evando Nascimento flagra as atividades de um personagem velho conhecido da cidade: o taxista conquistador que, não satisfeito, narra com detalhes suas transas. Ao pobre passageiro, resta ouvi-las, ou descer do carro.

O relato “Táxi” é preciso ao mostrar a frustração do motorista: “(…) vontade mesmo tenho de escrever um romance contando minhas aventuras, desventuras, muito além da imaginação”. Cuidado com o tipo, leitor, ainda mais sabendo que o tempo perdido no Rio em engarrafamentos triplicou nos últimos dez anos.
[…]

Produção Literária

publicado por Webmaster em 3 de agosto de 2014 às 00:00 | editado em 01/08/2014 às 19:14

CANTOS PROFANOS

Desde que estreou na ficção, em 2008, Evando Nascimento tem se destacado por duas características raras na produção literária brasileira. Uma delas é o estilo narrativo original, que explora a exuberância da linguagem sem perder de vista o rigor e a concisão. E a outra é a força inventiva com a qual transforma a algaravia e as contradições do cotidiano em matéria-prima para histórias surpreendentes. Em Cantos profanos, seu terceiro livro ficcional, essas características aparecem em contos breves, fragmentos e microensaios. Representam, assim, outra marca do autor: seu jeito de desafiar os gêneros, explorando diferentes formações discursivas.

Na obra, Evando vasculha de forma sui generis algumas das zonas sombrias do contemporâneo. Em suas páginas, o leitor poderá acompanhar as peripécias de um taxista libertino, os instantes finais de um suicida, as diatribes de um narrador exausto da hiperinformação, o sexo fortuito de uma pesquisadora-palestrante. Canibalismo, incesto, violência urbana, luta de classes – temas provocativos aparecem sob ângulos muitas vezes inusitados, atribuindo vida a situações das quais, em geral, mesmo a literatura tenta se esquivar.

Mas Cantos profanos também exibe tramas de vigor lírico. É o caso de “Altamente confidencial”, conto que reproduz o e-mail onde um carteiro faz uma ode à profissão e à literatura. Ou de “Noturno”, cujo narrador tem uma epifania ante uma ave marinha, em noite de carnaval. Em outros textos, Evando ultrapassa os limites do cotidiano rumo a exercícios de intensa fabulação, como em “Terra à vista”, que retrata a angústia do derradeiro sobrevivente de um módulo espacial ancorado em Marte, às vésperas do ano 2150.

Não por acaso, é a primeira pessoa que prevalece nas narrativas deste livro. São testemunhos de nossos tempos, vozes que reverberam as angústias e contradições contemporâneas. Juntos, desenham um caleidoscópio perturbador. Mas que, ao mesmo tempo, não se esquiva da alegria. Porque as histórias presentes em Cantos profanos são também tramas de resistência, de encantamento, de sedução ante a vida e ante a linguagem, com tudo o que as duas possuem de perverso e, por isso mesmo, irresistível.

Na parte final do livro, Evando apresenta sua aguda verve de filósofo-cronista, com um rol de formas textuais que poderíamos chamar fragmentos, pequenas crônicas, aforismos, microensaios. Mas que parecem mais apropriadas se classificadas sob o título que as reúne: “Vestígios”. São, afinal, rastros de movimentos pelo mundo, reflexões que têm como mote temas tão diversos quanto o suicídio de Lady Macbeth e a opressão espacial que marca o filme O som ao redor.

Cantos profanos não se exime dos laços sanguíneos com seu antecessor, Cantos do mundo, um dos livros finalistas do Prêmio Portugal Telecom de 2012, na categoria conto/crônica. É uma obra que renova este que parece ser o compromisso de Evando: perscrutar a singularidade e o encantamento num mundo que parece, à primeira vista, cada vez mais uniforme.

O AUTOR

Evando Nascimento nasceu em Camacã – Bahia, em 8 de agosto de 1960. Escritor, ensaísta e professor universitário, é considerado um dos maiores intérpretes do pensamento de Jacques Derrida, de quem foi aluno na École des Hautes Études en Sciences Sociales. Em 2007, realizou um pós-doutorado em filosofia na Universidade Livre de Berlim. Publicou vários livros, sendo dois de ficção: Cantos do mundo (finalista do Prêmio Portugal Telecom 2012), e Retrato desnatural (2008).

http://gazetadooeste.com.br/cantos-profanos/

CONTRACANTO OU ODE PARALELA

Retrato de Evando Nascimento, por W.B. Lemos

Escrito por W. B. Lemos em 28 de junho de 2015

http://www.revistapessoa.com/2015/06/contracanto-ou-ode-paralela/#

I – A educação sentimental

Vibrem agora as primeiras notas da lembrança deste encontro-entrevista, com pauta dividida em duas audições, de um autor, cuja obra já dispõe de considerável reconhecimento crítico, com seus leitores. Leitores e, além disso, estudantes de literatura: graduandos, graduados, pós-graduados etc. Sendo assim, após a cantata a capella, soe este prelúdio dissonante para um figurado portrait de Evando Nascimento, o escritor – ficcionista e ensaísta – entrevisto.

Infância, adolescência e juventude algo solitárias, dedicadas à leitura intensa (“Machado de Assis, Érico Veríssimo, Dostoiévski, Jorge Amado, Drummond, Vinicius de Moraes, Clarice Lispector – literatura pensante –, Proust, Thomas Mann – A montanha mágica, fascínio absoluto”) e escrita ensimesmadas, sobre as quais nos informa um Evando leitor de si, em rememoração, e, agora, simultaneamente narrador.

Em sua fala inicial, breve retrospecto (auto)biográfico intelectual, destaca-se uma questão fundamental, e que diz respeito a vários dos presentes: quando e como o escritor se torna o que é?

Seria esse o momento e o modo do encontro marcado do escritor consigo mesmo. A obtenção da resposta a essa questão seria um dos pontos altos de um romance de formação. Ainda que inescrito, supomos vivido pelo autor à nossa frente. Antes vital e de difícil resolução quando experienciada, apenas a passagem de muito tempo possibilitou que semelhante pergunta pudesse ser retoricamente refeita e, ora, em nossa presença, respondida sem maiores dificuldades.

E a resposta está associada a uma questão adicional. Por que romper com o ineditismo da composição e solfejo solitários dos anos formativos e publicar? “É fundamental, do ponto de vista da comunicação humana, passar pela prova do outro. De fato, você só se torna escritor quando publica. Enquanto não publica, você é um pretenso escritor”, assinala o autor de retrato desnatural (2008).

II – A farmácia de Platão

2004. Diários. Início da escrita esparsa que originará o ficcional (auto)retrato do autor. Dosagens verbais aleatórias periódicas, recompondo-se em escritura não delimitada. É chegada a hora de orquestrar o arranjo da dicção que virá a público sob a forma de um livro sem gênero, fecundado para muito além de um projeto específico predefinido, mas não amorfo, livre fantasia verbal – polimórfica e polifônica. “De maneira caótica e sistemática, fragmentariamente”, nasceu (fez-se obra) o objeto desnatural, fármaco sem fórmula precisa, revela-nos, cúmplice, Nascimento.

Mesmo assim, a manipulação cuidadosa pode isolar alguns dos elementos constitutivos desse complexo composto (de 2004 a 2007), veneno-remédio, rico em poemas (em verso e prosa), bem dosado de contos, crônicas (narrativas curtas de fatos metamorfoseados), notas do cotidiano datadas (sem linearidade cronológica) falsa ou verdadeiramente (ou mesmo sem datas), dotado de comentários sobre vivências diversas (como as de fruição artística, cinematográficas por exemplo) e de múltiplas adições de epigramas, microensaios, registros de diálogos – em suma, experimental panaceia-emplasto resultante de arcanos escrupulosamente laborados, como o faria um herdeiro de Derrida.

No que diz respeito aos modos de administração e indicações posológicas, as recomendações e advertências são mínimas. Até então, desconhecidas circunstâncias contraindicativas. A prazerosa fruição dos efeitos do phármakon não está condicionada ao anterior contato com o conteúdo ou prévio consumo de nenhuma das substâncias que o constituem, sob quaisquer formas ou dosagens, muito menos à identificação desses componentes ou mesmo reconhecimento de suas fontes originárias, matriciais.

Relatos testemunhais comprobatórios da eficácia literária, metafórica e/ou metonímica do medicamento no tratamento dos males associados à merencória condição humana têm sido documentados. A ação é, conforme minha experiência de leitura, no mínimo, paliativa.

III – Discurso na seção de achados e perdidos

Evando em anedota confessional. A da revelação de um inusual e inadvertido furto. O de apenas dois versos finais de um poema da escritora polonesa Wisława Szymborska – percebidos e identificados em resenha escrita por uma atenta leitora, a poeta Mariana Ianelli. Estão, os versos, amorosamente amalgamados (inconscientemente incorporados) a “Elos”, conto de Cantos profanos (2014). Pedem-me releitura, o conto e a singular poesia a que ele, em diálogo quase subliminar, remete.

IV – O perfeito cozinheiro das almas deste mundo

Oswald de Andrade ainda pode ser uma espécie de admirado herói cultural para um escritor contemporâneo, “exuberante e irresponsável mestre anárquico”, como o nomeia Evando Nascimento.

Exercendo sobre o escritor influência determinante, direta – seja pela poesia ou pelos manifestos – ou intermediada pela vanguardista recepção crítico-teórica de Haroldo e Augusto de Campos, a herança oswaldiana – mais fundamentalmente a invenção e pensamento antropofágicos – tem sido, a intervalos, sempre revisitada.

A emulação se dá sob perspectivas, claro, cada vez mais críticas e frutíferas a cada novo enfrentamento, tanto na criação ficcional quanto na reflexão ensaística do autor de Cantos do mundo (2011), e será explorada em seu já anunciado próximo livro de ficção, assim como o foi nos dois anteriores, por exemplo, em contos como o extraordinariamente profético “Terra à vista” (Cantos profanos) e no tragicômico “E se comêssemos o piloto?” (Cantos do mundo).

V – Dublinesca

O cenário constituído pelo presente mercado editorial e pela mais recente “vida literária”; a ação e o jogo de interesses dos editores; o meio acadêmico; a atuação da crítica; as novas mídias, sobretudo digitais, veiculadoras do texto; as relações entre leitores, escritores e preferências de leitura atuais; o debate acerca de controversas concepções do que é tido por literário hoje, entre outros temas correlacionados, não poderiam deixar de ser alvos de animada discussão e inflamados comentários em um encontro de tantos entusiastas (entre os quais, vários professores) do que alguém talvez pudesse ainda chamar de verdadeira literatura. Ou, pelo menos, “uma literatura pensante”, como diria Evando, reutilizando a expressão com que designou, no título de um de seus recentes livros de ensaios, a obra de uma das mais desafiadoras escritoras da literatura brasileira (Clarice Lispector: uma literatura pensante, 2012).

O contista foi incisivo em sua avaliação desse complexo contexto. Não deixou dúvidas quanto ao que considera “literatura de qualidade”: “aquela que tem em si mesma vasto conhecimento do universo literário”. Desse modo, destacou e criticou com franqueza a propagação favorecedora do que é frívolo, medíocre e efêmero, mas facilmente vendável e consumível, por exemplo, a saber: best-sellers temáticos (como o filão dos livros de vampiro) e oportunistas, produzidos em escrita seriada e em larga escala; ou livros escritos por ghost-writers, encomendados por celebridades instantâneas, por sua vez, atendendo demandas de editoras mais que comerciais, para citar apenas dois de uma lista numerosa de males acentuados nos nossos tempos leitores.

O escritor desnudou, assim, o modo como parte da indústria, motivada exclusivamente pelo lucro, investe desmedidamente em escrita apenas como mercadoria, em detrimento do que, sem dúvida, pode ser considerado mais duradouro e fundamental, de um ponto de vista artístico exigente e criterioso, a exemplo de um novo livro de contos do escritor Sérgio Sant’Anna.

Como forma de resistir às consequências desses poderosos mecanismos e modismos, também a meu ver, funestos à literatura contemporânea, o autor falou do efetivo exercício de sua reflexão, escrita ou exposta em palestras e congressos, em defesa dos valores do que insiste em considerar como “obra literária” – tema de sua participação no XIV Congresso Internacional da ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura Comparada), a se realizar de 29 junho a 3 julho próximo, na UFPA, em Belém.

Comentando essa sua forma de atuação, Evando falou ainda sobre o inusitado convite que recebeu, e aceitou, para futura participação em outro simpósio literário, dessa vez, na Universidad Católica de Valparaíso, no Chile. Por que inusitado? O tema da ementa do evento é “a literatura em desaparecimento”.

Não pude me impedir de ver o ficcionista como um personagem de Enrique Vila-Matas, que, hiperconsciente, teimosa e quixotescamente, lutasse contra a morte da literatura. Como um partidário do bom, do belo e do justo literários, feito o ex-editor Samuel Riba, de Dublinesca.

VI – Consistência

Em sua apaixonada defesa de valores literários, a fala e o posicionamento, além de artístico, ético de Evando Nascimento me fizeram lembrar Italo Calvino e suas Seis propostas para o próximo milênio. Proposições infelizmente não proferidas no célebre Charles Eliot Norton Poetry Lectures – ciclo anual de conferências da Universidade Harvard, de que participaram personalidades como Stravinsky, Borges, Eliot, Northrop Frye e Octavio Paz –, devido à morte do convidado, ocorrida poucos meses antes da realização das palestras no ano de 1985.

“Leveza”, “Rapidez”, “Exatidão”, “Visibilidade” e “Multiplicidade” foram e seriam cinco das preserváveis, e a serem continuamente preservadas, características essenciais do fazer literário consequente, segundo o autor de Se um viajante numa noite de inverno. Propriedades essas que possivelmente resguardariam – e desde então já o fizeram – a existência e, por muito mais tempo, possibilitarão a sobrevivência da melhor literatura do porvir.

Na contística de Evando, são patentes cada uma dessas cinco referidas e reverenciáveis qualidades. Mas há ainda uma sexta a servir-lhe de justo adjetivo. Aquela sobre a qual Calvino não pôde escrever a última conferência que comporia as Seis propostas: “Consistência”.

Seria esse o título da última proposta. Quanto às obras de que trataria, sabe-se apenas que faria referência a Bartleby, o escrivão, de Herman Melville. E esse é o segundo motivo pelo qual mais uma outra consistente ponte pode ser conectada entre Evando e Calvino. A predileção temática, o interesse por questões literárias fundadoras.

Em um dos contos de Cantos profanos, “Altamente confidencial”, Gabriel Arcanjo, protagonista e narrador, é um funcionário da ECT. Em dado momento do excêntrico depoimento que estranhamente é obrigado a redigir, o personagem se refere ao que denomina de “Escritório das Cartas Mortas”, ao qual, não revelarei como, seu trabalho está relacionado. Aqui, Evando e Melville cumprimentam-se, uma bela homenagem é feita, e um dos personagens mais enigmáticos da literatura ocidental é revivido e atualizado.

Na novela do escritor norte-americano, antes de ir trabalhar como copista no escritório de advocacia em que o conhecemos, Bartleby havia sido funcionário subalterno no “Departamento das Cartas Mortas”, uma repartição dos serviços postais norte-americanos, onde seu trabalho era o de manusear essas cartas e separá-las para serem lançadas às chamas.

O conto de Evando é absolutamente autônomo, a leitura dele, e muito menos sua escrita, em nada dependem da narrativa que o autor de Moby Dick escreveu, ou de que a tenhamos lido para que seja amplamente fruído. Ocorre, no entanto, que Evando faz literatura de qualidade, ou seja, “aquela que tem em si mesma vasto conhecimento do universo literário”, retomando, enfaticamente, e para finalizar, sua definição. Literatura como fonte de prazer estético, tanto mais potente quanto mais rica desse conhecimento, resultante do mais profundo diálogo entre obras e autores de inúmeras tradições incorporados ao seu cerne.

Três perguntas para Evando Nascimento, por W. B. Lemos

1. Em sua ficção, narrativas fundadoras são reescritas e atualizadas. Isso ocorre, por exemplo, em “Babel revisitada”, um dos contos de Cantos profanos, seu último livro, e em “Edens”, que integra seu livro anterior, Cantos do mundo. Qual a relevância do arcaico, do arquetípico, ou seja, de componentes primordiais em sua poética?

Penso que o que hoje chamamos de mito ou de mitologia era entendido nas culturas originárias como religião. Os gregos antigos acreditavam realmente que Zeus e Dioniso existiam, bem como os hebreus acreditavam em tudo o que é narrado no antigo Testamento. Nossas religiões atuais manterão seu prestígio enquanto houver judeus, cristãos, muçulmanos, budistas, espíritas etc. que creiam em seus ídolos. Mais tarde, quando a fé nessas religiões se extinguir, passarão todas ao status de mito. Nascido num território anteriormente colonizado por uma nação europeia como a portuguesa, falando o idioma deles, direta ou indiretamente recebi uma cultura religiosa e mítica como parte do legado colonial. Também recebi, pelas mais diversas vias, elementos do fabulário autóctone, indígena, como os mitos de Tupã, Jaci e Coaraci, entre outros. Finalmente, por minhas origens baianas, tive algum contato com o imaginário africano, que migrou junto com os escravos. Tive acesso a outras fontes míticas e religiosas por meio dos livros, como as histórias árabes das Mil e uma noites, que conheci em adaptações quando criança e integralmente mais tarde numa bem cuidada tradução francesa. Do mesmo modo, tenho algumas noções de mitos do antigo Egito, da China e do Japão. Não sou especialista em nenhuma dessas culturas mítico-religiosas, mas todas me fascinam por algum motivo e, se tivesse tempo, certamente me dedicaria a pesquisá-las a fundo. Como escritor, me sinto herdeiro dessas culturas, mesmo que etnicamente não seja verdade na maior parte dos casos. A imaginação desconhece fronteiras, e tenho enorme prazer em brincar com a fantasia de outros povos. Como toda brincadeira, isso tem algo de muito irresponsável, de jocoso mesmo – esse adjetivo vem do jocus latino, que significa graça, gracejo, galhofa, divertimento, brincadeira, resultando também em jogo no português. Ao lado desse aspecto lúdico, penso que há também algo de muito sério. O problema é que essas mitologias escondem inúmeros preconceitos sexistas, étnicos e morais. Muitas, talvez a maioria, se originam de sociedades profundamente patriarcais. Como habitante do século XXI, não posso reproduzir os valores desses mitos ao pé da letra. Assim, por meio de uma brincadeira muito séria, procuro inverter ou deslocar aqui e ali alguns dos valores arcaicos desses ícones culturais em minha poética, para utilizar seu termo. Creio que é mais ou menos isso o que acontece quando “brinco” com Babel, o Gêneses, Édipo e Coaraci em algumas de minhas histórias, que até por isso nunca são inteiramente minhas…

2. No conto “Noturno (Pequena fantasia musical)”, de Cantos profanos, um narrador humano, em uma experiência de espelhamento, ao observar hipnotizado uma não nomeada, mas identificável, ave noturna, alerta a si mesmo quanto ao perigo de se transformar naquilo com que simpatiza. Em Cantos do mundo, um aquário, como que animado por uma divindade, reflete sobre sua condição existencial e mesmo sobre os aprisionantes destinos humanos. Você poderia comentar acerca das relações de sua escrita com radicais processos de despersonalização, personificação e o diversificado uso de máscaras?

Essa é uma questão extremamente complexa que não sei como explicar bem, mas sinto que ela atravessa toda minha ficção, sobretudo a que estou fazendo agora. Tenho o sentimento de que sou profundamente mimético. Toda vez que me deparo com algo de bom e belo, seja produto da natureza ou artefato humano, sinto de imediato uma grande inveja, um desejo de ter aquilo para mim. Essa compulsão é tematizada literalmente no retrato desnatural, no poema “da imitação (elogio da inveja)”. Acho a inveja uma grande qualidade quando bem aplicada, sobretudo para fins inventivos. Como as crianças, diante do que é bom e gostoso, eu digo logo “eu também quero!”. Isso faz com que sinta necessidade de imitar ou antes “emular” (para utilizar um termo antigo e ao mesmo tempo atual) aquilo com que simpatizo ou então por que sinto forte estranhamento. Pode ser um bicho, como essa ave que você cita, uma coisa, como o aquário, alguém muito diferente de mim, como o Diabo, ou até mesmo um estado, uma situação, como é o caso do paciente que não morre porque faleceram em seu lugar, no conto “Estação terminal”. De modo que tenho a impressão, a ser confirmada ou não por meus leitores, que estou o tempo todo fazendo pequenos experimentos, me aproximando furtivamente daquilo que não sou para de certo modo “roubá-lo”. Só que, ao contrário do vampiro e do antropófago, não preciso destruir o bicho, a pessoa ou a coisa mimetizada para me parecer com ela. Procuro exercitar esse meu lado camaleão pela escrita e mais recentemente pelo desenho. De algum modo, me hibridizo, me misturo e até me transformo momentaneamente naquilo que me fascina. O risco dessa brincadeira é, ao contrário de Alice, passar em definitivo para o lado de lá do espelho, ou seja, não voltar a meu estado anterior… É arriscado, mas vale a pena. A capacidade de metamorfose é um dos talentos que alguns autores têm, não sei se muitos, e que procuro desenvolvê-la com meus parcos recursos. No fundo, tudo parte do desejo de ser ou virar outro, outra coisa, menos demasiadamente humana. Tal seria o que nos Cantos profanos chamei de estética da emulação e que funciona de vários modos, inclusive em relação à tradição literária e artística. Não sei aonde esse processo inventivo vai dar, mas é o único que no momento me interessa, por bem ou mal.

3. Retrato desnatural: (diários – 2004 a 2007), sua primeira incursão pelo poético-ficcional, é uma obra em que os mais diversos gêneros literários (poema, conto, ensaio etc.) transitam e se fundem. Além disso, é literatura dialogando com outras artes (plásticas e cinematográficas, por exemplo), e pode ser lida sob a perspectiva de certa desassossegada estética do fragmento. Como o fortuito e a incompletude são apreendidos e incorporados em seus processos de escrita?

De maneira fortuita e incompleta. Quero dizer com isso que a resposta já está embutida em sua pergunta. É justamente por não ter um projeto fixo que vou experimentando em várias direções. Ao contrário de outros escritores, os quais quando começam sabem que vão fazer um romance, um livro de contos ou de poemas, nunca sei. Vou simplesmente escrevendo fragmentos, que podem se tornar poemas, histórias curtas, pequenas crônicas, anotações de diário, epigramas etc. Muitas vezes, esses gêneros se misturam num mesmo texto. Raramente isso é calculado, tudo ocorre graças à disposição do momento, com um insight ou alguma emoção, um páthos, que me toma inesperadamente. Depois de algum tempo, que podem ser meses ou anos, vejo o que produzi e aí sim começo a elaborar um projeto de livro a partir das anotações casuais. Porém, antes mesmo que o projeto se materialize, escrevo e reescrevo diariamente aquilo que emerge. Há um trabalho insano para chegar à forma final. Nunca estou satisfeito com o resultado alcançado, e é por isso que logo após terminar um livro sinto vontade de começar outro, para preencher as lacunas do anterior. Escrever, como desenhar, dá muita insatisfação, nunca se tem certeza daquilo que foi feito. Mas há também um enorme prazer em dar o melhor de si e depois aguardar a resposta dos ilustríssimos leitores, que, eles sim, podem completar a obra, a qual não consegui realizar de todo. Creio que quem assina por último não sou eu, mas minhas leitoras e meus leitores. No final de cada volume, deixo algumas reticências virtuais para que me ajudem a completar e finalmente assinar a obra. E esse trabalho digamos coletivo é inteiramente aleatório, depende do acaso da destinação.

Curadoria de João Cezar de Castro Rocha.

W. B. Lemos é autor de Rasga-mortalha – poemas dos outros, sua estreia em livro. Antes, publicou o primeiro fragmento de “Memento d’Ângelo”, romance inacabado, na edição número 17 da revista de poesia “Inimigo Rumor” (7Letras/Cosac Naify). É mestre em Literatura Brasileira pela UERJ e doutorando em Literatura Comparada na mesma universidade.

Revista Pessoa / Seção Literatura Brasileira Hoje

http://www.revistapessoa.com/2015/06/contracanto-ou-ode-paralela/#

Entrevista de André Sant’Anna com Sérgio Sant’Anna

22 março 2013, 3:43 pm

http://www.blogdacompanhia.com.br/2013/03/entrevista-com-sergio-sant%E2%80%99anna/

andré sant’anna, sérgio sant’anna

Após ter respondido as questões enviadas por Bernardo Carvalho, perguntamos a André Sant’Anna quem ele gostaria de entrevistar. A resposta veio rápido: “meu pai, tenho mesmo umas perguntas pra fazer pra ele”.

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AS: Dos livros que leu, quais foram os mais importantes em sua vida? E os que mais influenciaram a sua literatura?

SS: Li muitos livros e não me sinto em condições de responder a essas perguntas. Mas leituras recentíssimas foram importantíssimas em minha vida: César Aira e Evando Nascimento. Isso na prosa, pois na poesia a obra dos concretistas me marcou, incluindo aí o neoconcreto Affonso Ávila. O que mais influenciou minha literatura, para não dizer minha própria fruição artística, não foi um livro mas um “retard en verre”: “La marié mise a nu par ses célibataires même.”

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