Textos críticos
A desordem das inscrições (Contracantos)

Contracantos contemporâneos: perspectivismo e expansão em Evando Nascimento

Roniere Menezes

“Eu não sou eu nem ou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio.”

Mário de Sá Carneiro

Contrapontos

O livro A desordem das inscrições (contracantos), de 2019, “fecha” a trilogia de contos iniciada por Evando Nascimento com Cantos do Mundo (contos), de 2011, e Cantos profanos, de 2014. Em diversos dos textos a noção de contracanto e mesmo a de profanação ou ecoam como modos de propor novas perspectivas, outras experiências relativas ao sentir-pensar.

Na produção literária de Evando Nascimento, percebe-se um estreito diálogo com as leituras filosóficas empreendidas pelo autor, em especial, de Jacques Derrida, mas o escritor segue outros caminhos, utilizando-se de diversos repertórios, de sua erudição, de seu pensamento arguto, de sua memória vasta e inventiva. Assim, cruza fronteiras e escreve a partir de um canto, de um corpo singular no mundo, mesmo que este canto e esse corpo estejam abertos a múltiplos fluxos e interações. Com A desordem das inscrições (Contracantos), o pensador e artista brinca com as inscrições, com as filiações identitárias, com os lugares e as imagens sociais fixos, cria outras inscrições, abertas ao devir. Busca-se um contracanto, um sopro paralelo, repetição diferencial e questionadora. As garatujas associadas, nos desenhos presentes em A desordem das inscrições, às imagens, revelam esse cruzamento entre instâncias distintas.

Contracanto e contraponto são termos irmãos, apesar de contracanto ser utilizado mais entre cantores corais, no choro – no caso do Brasil – e em obras instrumentais em que aparecem melodias que se relacionam com aspectos técnicos vocais. Isso é, aproxima-se mais da oralidade. O contraponto é um conceito mais utilizado por instrumentistas eruditos e refere-se à textura polifônica. Para o maestro e professor Sergio Magnani, “O contraponto é a sobreposição de duas ou mais linhas melódicas, cada uma das quais mantém a sua independência”. (MAGNANI. Expressão e Comunicação na linguagem da Música. Ed. UFMG, 1996, p. 86)

Os cantos de Evando funcionam como heterotopias. Singulares vozes aparecem no texto contando suas experiências, dizendo o “não-dito”, evidenciando o que não aparece no jornalismo, nas mídias eletrônicas, na história, na filosofia (Cf. Cantos profanos, Biblioteca Azul, 2014, p. 26).

A linguagem

A escrita de Evando Nascimento revela-se direta, clara, sucinta. Algumas frases inconclusas dialogam com uma espécie de abertura poética presente, por exemplo, em João Cabral de Melo Neto, como podemos notar no conhecido poema “Tecendo a manhã”. A sintaxe não foi finalizada mas o sentido fica ressoando à nossa frente clamando por nossa interação com o fio discursivo. Esse aspecto aparece mesmo na parte final do livro quando o autor deixa o aspecto ficcional e busca trabalhar com um tom mais ensaístico e mesmo confessional relativo às suas percepções sobre a atualidade brasileira.

Em Evando, a linguagem permanece precisa, mesmo quando o enredo apresenta ideias distópicas e atópicas, inverossímeis, algo que aproxima – com todas as diferenças quanto ao projeto literário – o texto de Evando ao de Murilo Rubião. O escritor mineiro, em seus contos, mantém uma linguagem clara, precisa, mesmo quando as coisas mais espantosas acontecem no espaço narrativo. Com a diferença de que, em Murilo, as personagens não se espantam com a chegada de dragões à cidade, como podemos ver em “Os dragões” (RUBIÃO, 1981) e em Evando acontece de a personagem, em um primeiro momento, se perturbar com as modificações pelas quais está passando, como ocorre com “As Metamorfoses”, quando a mulher transforma-se em homem e não sabe como abrir a porta e mostrar sua nova face ao ex-marido que deseja visitá-la. Em Evando, não há o fantástico muriliano, mas o estranhamento provocado pelos textos em alguns momentos não se distingue muito do que acontece com as narrativas kafkianas do autor mineiro. Aliás, um dos contos de A desordem das inscrições faz referência direta a conto de Kafka: “Um novo artista da fome”. Gostaríamos ainda de sugerir uma aproximação entre o conto “Babel revisitada”, de Cantos profanos, e o conto “O edifício”, de O pirotécnico Zacarias (RUBIÃO, 1981). Em ambos, o insólito, as construções que rompem com os sistemas comuns de pensamento tomam lugar.

As incertezas, as dúvidas, o acaso ocupam boa parte da literatura de Nascimento. Voltando ao conto “As metamorfoses”, o texto trata da história de dois irmãos gêmeos e andróginos que foram criados um como menino e outro como menina. Em um determinado dia, já adultos e distantes, sem saber se por efeito de um pó que havia cheirado muito em uma festa, começa a despertar no corpo dele a presença até então oculta do ela. Já ela, médica, separada, ao acordar de uma noite com estranhos sonhos, percebe alterações no corpo e vê surgir, em si, o ele adormecido. A noção de “intertroca” pensada por Evando em Clarice Lispector: uma literatura pensante, contribui para nossas reflexões sobre o conto. Segundo o escritor e crítico, “Onde vige a intertroca, abala-se o identitário, que emerge como apenas um dos planos de imanência, não o único nem o mais essencial. Identificar-se é apenas um modo instável de atuar no teatro do mundo, assumindo determinada máscara”. (Clarice Lispector: uma literatura pensante. Civilização Brasileira, 2012, p. 35) Torna-se importante lembrar que no conto “As metamorfoses” aparece o desenho, feito pelo próprio Evando, da carta de baralho com a imagem invertida do rei e rainha de copas, imagem que compõe a capa do livro A desordem das inscrições.

A questão do duplo, do jogo especular – muitas vezes com a metáfora do espelho invertido – aparece já na capa de A desordem das inscrições e figura de modo bem evidente, por exemplo, nos contos “As Metamorfoses” e “Outro espelho”. No primeiro, como vimos, há trocas de gêneros; no segundo, os irmãos gêmeos, escritores, não conseguem inventar o mundo além de sua própria imagem e semelhança. Nesses textos, a ideia do duplo não se reduz à oposição binária, à dicotomia, antes abre-se para o atravessamento de fronteiras o que se aproximaria da ideia de terceira margem em que o desejo de se fingir outro, de se fazer outro, cumpre importante papel, inclusive se pensarmos na relação dessas alternâncias com a própria forma literária, o que traduziria uma verdadeira literatura expandida, não apenas uma decoração de expansão.

O conto “Sonhador” traz a temática da duplicidade quando pensamos na subjetividade partida de um morador de Irajá que sonha apenas em coisas grandiosas. “Diziam que vivia fora da realidade no subúrbio do Rio de janeiro”. (NASCIMENTO, A desordem das inscrições (Contracantos), 2019, p. 69) Converte realidade em sonho, sonho em realidade, torna-se pessoa rica e termina com a imaginação fugindo ao controle, desejando alcançar “o encanto dos encantos: a imortalidade”. (2019, p. 69) O ótimo conto “A obscena senhora C.” amplia a questão do duplo ao apresentar discrepâncias entre o modo de vida pública e privado de Dona Deusinha, nascida Celeste Edeusina dos Santos Trindade. Uma beata, viúva, filha de militar que trabalhara como agente no Departamento de Censura Federal e completamente obcecada por sexo, inclusive os das cenas de filmes que censurava: “Ainda quando Seu Osnildo, o devotado esposo, era vivo, mantinha o antigo hábito de tocar umas às escondidas.” (2019, p. 153)

Percebe-se, na produção literária de Evando o desejo de partir, de não se fixar, de se lançar ao acaso, de migrar, questionar os cantos, os lugares dados, abrir-se à outridade, inventar o sonhador, como quem quer se soltar, se lançar ao encontro de novos cais, para nos lembrarmos da canção de Milton Nascimento em parceria com Ronaldo Bastos (Cais. Clube da Esquina, 1972). Evando declara que “só pode haver pensamento ali onde se dá o advento da alteridade enquanto tal, o outro como Outro ou Outra, em sua radical diferença”. (2012, p. 24)

A noção de perspectivismo perpassa toda a produção de Evando. O desejo de aproximação com a alteridade revela-se uma constante nas narrativas. O conto “Fidelidade” traz as memórias de um cão e revela-se ótimo exemplo dessa teatralização perspectivista relativa à observação do mundo sob a ótica do outro. Esse outro pode mesmo ser uma planta ou uma máquina – como ocorre nos excelentes enredos de “Grua”, de Cantos do mundo e “Inteligência desnatural”, de A desordem das inscrições. Neste conto, uma espécie de robô com inteligência artificial, após dizer que a espécie atingira um de seus maiores artifícios, a capacidade de fingir, afirma: “agora (…) se perderam de vez as balizas entre a vida e a morte, o orgânico e o inorgânico”. (2019, p. 132) Devemos ainda nos lembrar de “Monique”, texto que mostra a relação fiel, apaixonada e de ampla parceria entre o protagonista e sua boneca inflável.

Em geral, as personagens de Evando estão em descompasso com o mundo ao redor. As dificuldades de convivência surgem em diversos momentos dos textos, em diálogo com a temática da sexualidade e da sensualidade. A questão amplia-se em relação à ideia de conflito familiar, na dissonância – outro conceito musical que amplia a noção de contraponto – que aparece, por exemplo, nos contos “Célio”, que trata de um jovem de família rica que abandona tudo para trabalhar como médico na periferia e “Um novo artista da fome”, texto que traz um jovem também rico que abandona toda a herança paterna para ser um mendigo performer e depois apresentar, em livro, a experiência.

Célio (“Célio) e Estevão (“Um novo artista da fome”) questionam o sistema familiar, a ordem econômica e preferem aproximar-se da pobreza, da miséria, das pessoas comuns, seja como médico ou como artista. A vida tomada como doação ao necessitado, a arte que pretende mimetizar a mendicância, acabam por refletir os diálogos entre a literatura e o “povo que vem”, como pensa Deleuze.

Para focarmos nas relações entre pais e filhos, podemos ainda acrescentar o conto “O herdeiro” e mesmo a passagem de “A copa do mundo não é nossa (desmemórias)”, quando o autor/narrador cita o conflito entre Manet e o pai. O jovem artista que viajou ao
Brasil na juventude, assim como as personagens Célio e Estevão, não aceitou seguir a profissão do pai. Nota-se aí, o questionamento da ordem, da lei, do controle.

Literatura como campo expandido

Em A desordem das inscrições (contracantos), as ilustrações, desenhos do próprio autor, postam-se em contraponto ao texto literário, ampliando, invertendo, reconfigurando as imagens presentes nas letras. Os contos de A desordem das inscrições, por meio de discursos profanos, apresentam contrapontos à ordem, à moralidade, ao pensamento e aos posicionamentos estanques, conservadores. No livro, as citações funcionam como hiperlinks que terminam por denotar heranças literárias, musicais e cinematográficas de Evando. Percebe-se, na estratégia, apropriações de elementos tanto da tradição literária quanto da cultura massiva. Versos de canções populares ocupam forte lugar nas narrativas. As citações podem também ser vistas como contracantos, traços que se alternam em relação à linha discursiva, suplementado-as. Podem aparecer como punctum, pensando em Roland Barthes. Torna-se bom ressaltar que contraponto vem do termo punctum: contrapuntum: nota contra nota. No início do contraponto, as experiências se davam acompanhando-se “cada nota de uma melodia com uma nota de outra, a saber, nota contra nota (em latim = punctus contra punctum)”, assinala Sergio Magnani (1996, p. 86).

Ao tratar do conceito de citação, em Clarice Lispector: uma literatura pensante, escreve Evando Nascimento (2012, p. 35): “Toda citação atende a uma lei incondicional de hospitalidade: acolher o texto do outro ou da outra para reverberar sentidos. (…) por definição, citar é retirar do contexto original para dar vez a novas e imprevisíveis significações”. Por esse motivo, não se justificaria a alegação de que se está citando fora de determinado contexto.

Triste copa

No capítulo final de A desordem das inscrições (contracantos), intitulado “A copa do mundo não é nossa”, a literatura migra para o gênero confessional, para as reflexões sobre o Brasil contemporâneo, o Brasil antigo, bruto e cordial de sempre, Aí são apresentadas questões sobre o futebol, a identidade e mesmo a metalinguagem.

Há, no cuidado com as palavras, no terceiro capítulo, mais ensaístico, elementos relativos à noção de “literatura pensante”, assim como nos dois primeiros capítulos, ficcionais, aparecem traços memorialísticos relativos mesmo ao conceito de biografema, como pensado por Roland Barthes. Em “A copa do mundo não é nossa” aparece uma reflexão mais aguda, distanciada, e mesmo questionadora dos acasos, como podemos ler, em trecho relativo ao “Brasil inzoneiro”, à mítica noção do “milagre brasileiro”, ao frágil caráter nacional: “Sem algum senso de determinação, o acaso sempre abolirá nossas melhores chances”. (2019, p. 221) Mesmo assim, o dado ficcional tangencia essa escrita mais crítica pois, como assinala Jacques Rancière, o pensamento trabalha, organiza, realiza montagens de modo ficcional. Os enunciados, sejam literários, científicos ou políticos produzem efeitos no real. Para o filósofo: “A política e a arte, tanto quanto os saberes, constroem ‘ficções’, isto é, rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer”. (A partilha do sensível. EXO Experimental org, 2009, p. 59)

Questionamentos sobre a sociedade e a cultura brasileiras, a falta de planejamento, o improviso, avaliações relativas à identidade nacional, à democracia racial são pontuados, ou melhor, contrapontuados por temas relativos ao futebol, à copa do mundo ocorrida no Brasil em 2014 (à fatídica derrota de 7 x 1 para a Alemanha), ao livro Terra Mátria que trata do fato de a mãe de Thomas Mann ser brasileira. O capítulo ainda relata a história da passagem do jovem pintor Manet pelo Brasil, em sua juventude, lembra escritos de Lévi-Strauss, etc.

Evando aproxima-se de Antonio Candido e Luiz Costa Lima na dura crítica ao aspecto oralizado, solto, sentimental e descomprometido presente em vasta porção da produção literária, cultural e mesmo burocrática do país. Os lugares fáceis da escrita são abominados pelo nosso autor. A literatura pensante e o rigor das reflexões se faz presente a cada desenho, em frase pausada, refletida, medida sem se deslocar da linguagem inventiva, da potência transformadora ligada à imaginação.
O improviso bem recebido pela produção de Evando é o improviso do Jazz. O Brasil deveria tratar o improviso como o Jazz. Deveria buscar uma ordem que apresentasse “menos improviso, mais seriedade na esfera pública, mais eficiência na gestão dos bens comuns, muito menos desonestidade”. (2019, p. 233)

No fundo, as confissões, as desmemórias fazem parte de um esforço intelectual para se tentar entender um pouco melhor esse canto religioso e profano, cordial e violento em que vivemos. Evando (2019, p. 228) revela estar afetado por uma “movência para se compreender o impossível Brasil”. Tentativa dolorosa de se pensar sobre o que faz deste canto do mundo uma nação. Seria possível vislumbrar aqui uma república? 

A desordem das inscrições reforça o lugar singular de Evando Nascimento na produção literária contemporânea. No texto aparecem mesclas de pensamento filosófico, cuidado linguístico e imaginação vertiginosa; surgem associações entre discurso claro e frases inconclusas; conjugam-se posições irônicas, incômodas e postura ético-social. Os focos em espaços heterotópicos escondidos na cidade e a prosa sensual, profana, visam a desestabilizar os lugares certos, engessados, de saber, identidade, instâncias poder falogocêntrico, para pensarmos em Derrida. O autor joga, mescla, embaralha gêneros sexuais e textuais, como assinala Maria Esther Maciel na orelha do livro. Os 13 desenhos do artista complementam, suplementam os 22 textos – juntamente com as citações de canções e o ensaio de irônico título: “A copa do mundo é nossa (desmemórias)” – levam a literatura para um espaço outro, desvinculado de suas formas canônicas, expandindo as fronteiras da ficção, transgredindo regras e normas. 

A criação de Evando Nascimento faz-se em constante diálogo com a noção derridiana de hospitalidade, de acolhida à diferença radical, a incapturáveis formas existenciais. Na dicção do autor, o imaginar, o criar não elide a lenta descoberta do saber, o planejamento. As fronteiras móveis presentes nas narrativas funcionam como experiências que possibilitam ao autor/narrador/leitor, observar o mundo sob diversos ângulos. Como diz Eduardo Viveiros de Castro, no perspectivismo nós não possuímos uma perspectiva, somos possuídos por ela. (Cf. Eduardo Viveiros de Castro (Encontros). Beco do Azougue, 2008). Para Castro (2008, p. 123): “o perspectivismo não é (…) a afirmação de uma equivalência – uma indiferença – entre todos os pontos de vista; ele é a afirmação de sua incompatibilidade enquanto “melhor perspectiva.” Desse modo, Evando compartilha com os leitores a possibilidade ficcional de entrar em outros corpos, outras subjetividades. Atua como um xamã a provocar os hábitos, as percepções limitadas, as convenções da vida social, sexual, literária.

Versão parcial do texto lido em 27.09.2020, na mesa-redonda “Ficção e Pensamento” do Colóquio Internacional 60 Anos de Evando Nascimento: O Pensamento da Cultura: Literatura, Filosofia, Artes & Tradução. Texto publicado na revista lusófona Pessoa: https://www.revistapessoa.com/artigo/3154/contracantos-contemporaneos.

Roniere Menezes é professor do CEFET-MG e pesquisador do CNPq.

Apresentação do livro A desordem das inscrições

POR MARIA ESTHER MACIEL

 

A desordem – entendida como desarranjo e perturbação de uma ordem legitimada – é a que se inscreve nos “contracantos” deste vigoroso quarto livro de ficção de Evando Nascimento, que, além de embaralhar as fronteiras entre gêneros (textuais e sexuais), vozes narrativas, registros linguísticos e referências estéticas, reinventa engenhosamente as relações entre escrita e imagem.

Palavras, traços, grafos e grafitos, entre naturezas mortas e quadros vivos, se articulam ao longo dos 22 textos que, em diálogo instável com 13 desenhos de autoria do escritor/artista, fazem a ficção transbordar da realidade e vice-versa. Com sua força desestabilizadora, desafiam também a ordem dos relógios e dos calendários, visto que nas histórias o passado mais ancestral e o futuro mais longínquo se enlaçam a experiências do presente imediato e aos espaços atemporais da imaginação. Nesse sentido, pode-se dizer que é um livro transversal, feito de cruzamentos imprevisíveis. A cada página, uma surpresa, um elemento capaz de desconcertar crenças e convicções.

A vida é a principal matéria-prima dos “contos” e desenhos, mas não se circunscreve aos limites do humano. Animais (humanos e não humanos), plantas, seres artificiais e híbridos compõem o repertório de personagens, narradores, imagens e temas do livro. Há o homem atormentado pelas onipresentes câmeras de vigilância; a empregada doméstica, mãe de cinco filhos, moradora de uma favela; o rapaz que tem como amante uma boneca comprada numa sexy-shop; um homem feroz em embate com um tigre; o cachorro vira-lata que narra suas atormentadas experiências; o homem que se vê transformado em mulher e a mulher que se vê transformada em homem; a beata religiosa e moralista que vive em estado de lascívia; o escritor que se prepara para escrever sua obra-prima; o performer de família rica que decide virar mendigo para depois relatar em livro a experiência da miséria; os gêmeos escritores que se bastam a si mesmos em sua simbiose radical; e muitas, muitas outras figuras atípicas e atópicas.

O “quem” que narra as histórias varia de texto para texto: é masculino, feminino, neutro ou tudo ao mesmo tempo, mostrando-se ora como um “eu” ou um “nós”, ora como uma voz impessoal. São sujeitos fluidos, em estado de mobilidade e, por vezes, de metamorfose. A realidade que lhes serve de referência também se encontra sempre assaltada por “sismos” que a levam, em diversos momentos, ao campo do insólito: é quando emergem cenas e cenários de matiz fantástico ou que se inserem na esfera da ficção científica. Como se não bastasse, ainda se encontra, na parte final do livro, uma espécie de reflexão ensaística permeada de memórias irônicas (ou melhor, “desmemórias”) do escritor sobre a Copa do Mundo brasileira.

Evando Nascimento oferece-nos, assim, uma obra de extrema vitalidade, que se desvia dos lugares-comuns da literatura instituída e se realiza, sobretudo, como provocação.

Apresentação da ficção de Evando Nascimento

POR SÉRGIO SANT’ANNA

A ficção de Evando Nascimento desordena as narrativas comportadas e tradicionais, para se inscrever no rol dos escritores brasileiros que têm surgido nos últimos anos e que fazem de suas histórias um meio de reinventar a realidade e a si mesmos. Ao contrário do que muita gente pensa, o conto não é apenas um estágio para o romance, mas um gênero autônomo que faz autor e leitores tornarem-se outros, transformados pela escrita, o primeiro, e pela leitura, os segundos. Fez muito bem Evando de nomear os seus textos de contracantos, pois, por sua invenção e criatividade, não cabem simplesmente na palavra conto que, ao que dizem os preconceitos, seria um gênero menor.

Evando Nascimento mostra que não é bem assim e faz desses cantos um alimento para a inteligência e o prazer.

Sérgio Sant’Anna. Texto publicado na Revista Olympio, n. 2, Belo Horizonte, Tlön e Miguilim, dez. 2019, p. 149.